Qua, 08 de junho de 2016, 09:44

Gizelda Morais, uma mestra para ser sempre lembrada
Beatriz Góis Dantas

Chegou ao fim a trajetória física da multifacetada Gizelda Santana Morais (1939-2015). Mulher de muito pensar, escrever e ensinar, sua memória começa a ser delineada pelos que a conheceram. Aqui, propositalmente, se enfatiza o seu lado de professora e pesquisadora envolvida com as questões da educação.

Grandiosa obra recentemente publicada – História e Memória, Universidade Federal de Sergipe, 1968-2012 (Souza, 2015) – à página 274 traz uma foto cuja legenda registra a professora Gizelda Morais, ao lado do reitor Gilson Cajueiro de Holanda, na reunião de implantação dos cursos de pós-graduação na Universidade Federal de Sergipe (UFS) em 18.08.1983. À fotografia, com sua capacidade de capturar momento fugidio, ocorrido exatamente há 32 anos, transformando-o em documento para a posteridade, soma-se a transcrição de curto texto-depoimento da própria Gizelda. Neste, ela relata as circunstâncias e as providências para a criação de um Programa regular de pós-graduação na UFS (p. 281).

Com a experiência adquirida no mestrado em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1981 ela regressou à terra natal e à UFS, à qual era vinculada, sendo incumbida de melhorar a qualificação dos professores da instituição: naquela época apenas 0,24% do corpo docente tinha doutorado enquanto 50% tinham apenas o título de graduação. Meticulosa, informa que decidiu “visitar pessoalmente os 12 doutores em seus respectivos laboratórios, convidando-os a nos unirmos para criar um Programa permanente de Pós-Graduação que pudesse melhorar este quadro, promovendo a participação dos pós-graduados na formação de seus estudos e pesquisas nas respectivas áreas. Visitamos em seguida os Departamentos, convidando-os a colaborarem conosco”. (Souza, 2015, p.281).

Desse modo, sob a coordenação de Gizelda, foram instalados, no início da década de 1980, quatro núcleos de pós-graduação que, ao longo do tempo e com a colaboração de muitas pessoas, frutificaram, permitindo à UFS contabilizar, no ano de 2012, entre seus feitos a existência de 38 cursos de mestrado e oito de doutorado (Souza, 2015, p. 283).

Recuando no tempo, trago ao conhecimento das novas gerações outra ação de Gizelda no campo educacional que merece ser destacada e reconhecida. Desenvolveu-se no âmbito da Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sergipe (SEC) e centrou-se no ensino primário e médio. Em 1970, o médico Nestor Piva assumiu a SEC e recrutou parte de sua equipe entre os jovens professores da Universidade que acabara de instalar-se. A professora de Psicologia Gizelda Morais, um dos quadros mais qualificados da UFS à época, com doutorado na França e especial interesse nas questões da alfabetização, foi ocupar a Assessoria Setorial de Planejamento da referida Secretaria. De sua curta passagem pelo órgão, resultou bem elaborado Plano Estadual de Educação e Cultura, 1971-1974. Documento bem fundamentado com dados empíricos trabalhados pelo estatístico José Américo de Andrade e analisados com rigor por Gizelda, o Plano apresentava soluções inovadoras para muitos problemas atinentes à administração das escolas, seus professores e alunos envolvidos no processo de aprendizagem. Constatando, por exemplo, a grave deficiência da qualificação dos professores do ensino primário e médio nos municípios mais distanciados da capital, onde se concentravam os docentes mais gabaritados, sugeriu aumento salarial proporcional ao afastamento em relação a Aracaju (p. 34). Era uma forma de motivar o deslocamento de pessoal formado para o interior e diminuir as carências educacionais das áreas mais desassistidas. Nova estrutura organizacional da SEC, divisão do Estado em regionais educacionais, aperfeiçoamento do quadro de professores são questões que, dentre outras, mereceram a atenção da jovem Gizelda Morais.

Como participante da equipe do secretário Piva, na qualidade de diretora do Departamento de Cultura e Patrimônio Histórico, que então se instalava, colaborei com o Plano no capítulo referente à cultura e pude testemunhar a impressionante dedicação de Gizelda na elaboração desse documento, construído em ritmo de trabalho acelerado, pois não se dispunha de muito tempo. Fazíamos parte de um governo liderado por João de Andrade Garcez, que completava o mandato de Lourival Batista, afastado voluntariamente do cargo para concorrer ao Senado. Isso, porém, não era motivo para fazer trabalho aligeirado. Ao contrário, era um desafio para dotar a SEC de um bem pensado roteiro de trabalho planejado para quatro anos. Gizelda era avessa a improvisações, porém, muitos de seus planos terminaram nas gavetas dos burocratas.

Sua atuação profissional como professora na Universidade Federal de Sergipe atesta sua preocupação com as questões da alfabetização, a integração dos diferentes níveis de ensino, a melhoria da formação dos docentes, a relação professor-aluno no cotidiano da sala de aula, temas recorrentes em suas publicações científicas e nas muitas dissertações e teses de seus orientandos, tanto da UFS, quanto da UFBA, onde atuou no mestrado em Educação.

A marca mais forte do trabalho de Gizelda como professora foi a seriedade de propósitos executados com competência e rigor metodológico e ético. Mais uma vez, valho-me da convivência com ela para testemunhar seu desempenho como professora. Fui sua aluna na década de 1960, na extinta Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, onde ela ingressou como professora em 1963, recém-saída da graduação. Logo depois, ausentou-se para completar sua formação acadêmica em São Paulo e, mais tarde, em Lyon (França), onde fez o doutorado. No seu regresso a Sergipe, tornamo-nos colegas na UFS e, por décadas, convivemos no mesmo Departamento. Sempre discreta, atuando com muita dignidade, nunca se valeu do seu título, à época uma raridade no cenário local, para alçar-se perante os pares. Impôs-se pelo trabalho e capacidade de agregar pessoas em torno de projetos, pela disponibilidade em colaborar com o trabalho alheio. Fui beneficiária dessa sua qualidade, pois leu os originais do meu primeiro livro e contribuiu para melhorá-lo. Juntas, trilhamos caminhos, enfrentamos incompreensões e consolidamos nossa amizade.

Uma vez aposentada, com o tempo livre, Gizelda intensificou sua produção literária, revelada ainda na adolescência, quando a poesia era sua companheira mais próxima. Explorou outros gêneros literários e tornou-se festejada escritora, que é a sua face mais conhecida. Num escrito de fim de vida, intitulado A um passo do esquecimento (2014), Giselda lembra que seu coração balançava entre a ciência e a poesia. Portanto, é para manter a integridade da memória dessa mulher plural que sua longa e intensa atuação no campo da ciência e do ensino também merece ser sempre lembrada.

Beatriz Góis Dantas,

antropóloga e professora emérita da UFS.


Atualizado em: Qui, 18 de agosto de 2016, 14:54
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