Sex, 02 de setembro de 2016, 10:07

Entre Zumbis e Pokémons
Henrique Nou Schneider

O Homem na ciberculturase torna refém de suas invenções tecnológicas?

Venho comentar a reportagem publicada na revista Isto é de 17/08/16 intitulada “Os riscos do PokémonGo”, norteando-me pela questão supra.

Pokémon Go é um jogo eletrônico baseado no desenho animado homólogo que foi sucesso entre a garotada na década de 1990. Ele usa o smartphone como plataforma e explora os recursos de geo-posicionamento (GPS) para identificar a posição geográfica do jogador obtida no Google Maps e de Realidade Aumentada (RA) associada à câmera e um determinado software que o jogador deve “baixar” no seu celular. Resumidamente, o jogador imerge em um cenário virtual, onde pode encontrar os Pokémonsem lugares reais, postados aleatoriamente pelo jogo.Para caçar os monstrinhos, basta perambular pela cidade até que algum Pokémon entre no alcançe do seu celular. O jogo também avisa,em tempo real, onde (cenários de RA) os Pokémons aparecerão, o que pode ser uma situação de risco: o jogador deve permanecer conectado ao jogo em tempo integral para não perder a oportunidade de capturar Pokémons. A priori, trata-se de um jogo sem estratégia que vise desenvolver habilidades cognitivas ou físicas, voltado somente para a diversão. Embora o jogo não agregue esses valores, tem-se apresentado como vantagem que ele está proporcionando o encontro entre pessoas nos lugares que os monstrinhos aparecem. Contudo, entendo que essa forma teleguiada de juntar pessoas, não me parece ser vantajoso. Décadas atrás, na época dos jogos não eletrônicos (álbuns de figurinha, bola de gude, pinhão, botão de mesa etc.) a garotada se reunia para interagir a partir da premissa de mostrar o seu álbum, trocar figurinha, jogar e/ou trocar bola de gude, botão e pinhão. Medindo-se as perdas e ganhos, acredito que este jogo tem causado mais problemas (dispersão do mundo físico pelo alto grau de imersão no mundo virtual, neurose, vício, transtorno em espaços públicos etc.) do que a vantagem de reunir pessoas visando a interação social.

É importante lembrar que na computação não existe mágica! Tudo o que se utiliza como produto de software (um jogo, um site, um aplicativo etc.) foi projetado e construído a priori. Assim, um usuário interage com softwares que foi idealizado por alguém. Quando é possível analisar o código do software (programa fonte), no caso dos softwares livres (código aberto), pode-se, para quem tem o conhecimento da linguagem de programação específica utilizada, compreender a lógica e a finalidade dos softwares. Mas, quando os mesmos só são disponibilizados no modo executável, caso dos softwares de código proprietário, não é possível analisá-los e, assim, conhecer a sua lógica e a sua finalidade. Através do jogo PokémomGo o usuário fica vulnerável, pois tem a sua localização denunciada, podendo ser vítima de qualquer tipo de violência.

A reportagem da “Isto É” denuncia casos os quais constatam exemplos de vitimização dos jogadores de PokemónGo: “ Nos países onde o aplicativo foi lançado antes de chegar ao Brasil, uma série de tragédias já foram relatadas. Em Baltimore, nos Estados Unidos, um homem em alta velocidade (sic) bateu em uma viatura de polícia parada. Na Guatemala, um rapaz de 18 anos foi morto em uma tentativa de roubo, e a polícia suspeita de que se tratou de uma emboscada. No aplicativo, há os Pokéstops (sic), que são pontos de referências do mundo real, onde o jogador pode conseguir objetos que usará em suas caças. Para isso, é preciso chegar perto desses pontos. Suspeita-se que os criminosos tenham usado o jogo para identificar esses PokéStops (sic) e, assim, esperaram pela vítima a postos.

No Brasil, vários estados já estão se mobilizando para alertar os jogadores sobre os perigos do Pokémom Go (sic). Em Pernambuco, a Polícia Militar divulgou uma cartilha de orientações para os usuários evitarem roubos e furtos. Já no Rio de Janeiro, o Departamento de Trânsito (Detran-RJ) lançou uma campanha para alertar sobre os riscos de acidentes nas ruas e pedir atenção aos pedestres e motoristas. ... Professor de Direito Digital da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Renato Leite Monteiro explica que, ao entrarem no universo da chamada realidade aumentada proporcionado pelo Pokémon Go (sic), os jogadores podem estar colocando em risco a segurança patrimonial e física”.

Sabe-se que um jogo, quando jogado indiscriminadamente, tem o potencial de viciar o jogador, independentemente da tecnologia utilizada. Por sua vez, o uso acrítico da tecnologia digital mediando o processo de comunicação e socialização (caso das redes sociais digitais) pode, também, viciar o usuário, tornando-o refém, além de desenvolver patologias e desvios comportamentais como a cibersolidão (tema que já discuti neste canal: http://www.ufs.br/conteudo/20097-cibersolidao). No caso do jogo Pokémon Go fica nítido que o jogo “prende” a atenção do jogador motivando-o, apenas, a acumular Pokénons apreendidos e o coloca, como um zumbi, em um estado de letargia.

Lê-se, ainda, na reportagem mencionada acima: “um bando de jovens caminha com cabeça abaixada, celular na mão, olhos vidrados na tela, como se estivessem sendo guiados pelo aparelho. Levantam a cabeça rapidamente para olhar ao redor, mas logo voltam a se concentrar em seus respectivos smartphones (sic), fazendo os desavisados franzirem a testa. É o apocalipse zumbi na era tecnológica?”. Não, respondo! É um grupo de pessoas sem autonomia de pensamento e que, por isso, não conseguem exercer a reflexão e agir com criticidade. É um exemplo de ingenuidade intelectual!

Tomemos o conceito de “esclarecimento” (aufklärung) formulado por kant. Ele assevera no capitulo “Resposta à Pergunta: Que é ‘Esclarecimento?’” do livro “Textos Seletos”, página 63: “Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem”.

Para finalizar meu comentário, retomo a questão apresentada no início: “O Homem na cibercultura se torna refém de suas invenções?” Sem pretender dar uma resposta definitiva, digo que sim – o homem contemporâneo tornou-se refém de suas invenções digitais eo é devido, como assevera Kant, em sua noção sobre o estado de menoridade, à situação de tutela que ele permite que lhe imponham. Com relação ao uso das tecnologias digitais, a facilidade de seu uso e a decisão do homem em permanecer na menoridade, o leva a não questionar o que elas engendram na sua programação, conduzindo a situações como esta que apresentei, nas quais se pode perceber a alienação de pessoas – jogadores do Pokémon Go que não atentampara o perigo que estão expostos, quando se deixam seduzir, acriticamente, por novidades tecnológicas. Somente a Educação, mediada por um processo de ensino-aprendizagem que permita ao aprendiz desenvolver a autonomia e a reflexão e, por conseguinte, a criticidade, permitirá que ele alcance a maioridade intelectual, libertando-se desta e de outras tutelas.

* Henrique Nou Schneider - Professor no Departamento de Computação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFS. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Informática na Educação.


Atualizado em: Sex, 02 de setembro de 2016, 10:13
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