Qua, 05 de outubro de 2016, 16:09

De Homem a Androide: Uma Análise Sobre o Uso Acrítico das Tecnologias Digitais
Henrique Nou Schneider

Norteado pela questão “Por que se faz mau uso das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) na atualidade?” e tomando como base teórica o texto de Kant “Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento ?”, apresento uma análise a partir da seguinte hipótese: “A ignorância sobre os sistemas computacionais, principalmente sobre o processo de desenvolvimento de software, aliado à facilidade de uso das tecnologias digitais, deixa os seus usuários vulneráveis a possíveis fins inescrupulosos e/ou doentios que estão invisíveis nas Interfaces Humano-Computador (IHC)”.

Inicio apresentando o conceito de sistema de computação. Ele é composto pelo hardware (o computador em todas as suas versões: desktop, laptop, notebook, tablet smartphone) e software (programas, dentre os quais os programas aplicativos: editor de textos, jogos, gerenciadores de redes sociais etc.).

O hardware, porção física do sistema, possui os seguintes componentes: dispositivos de entrada (teclado, mouse, microfone, tela sensível ao toque – touchscreen, disco rígido, pen drive, digitalizador - scanner etc.), dispositivos de saída (monitor de vídeo, tela, alto-falantes, impressora, disco rígido, pen drive etc.), memória (onde os programas, os dados e os resultados são armazenados temporariamente) e a Unidade Central de Processamento – CPU, responsável pela execução dos programas e processamento dos dados.

O software– programa (devido ao escopo da hipótese,vou me restringir aos programas aplicativos) é o que se apresenta com alguma utilidade para os usuários. Um programa é um algoritmo codificado em alguma linguagem de programação, como Java, Javascript, PHP, C, C#, C++, Python, Visual Basic etc. Um algoritmo é um conjunto de instruções escritas em linguagem gráfica ou em uma língua oficial como o Português, as quais descrevem a solução para uma determinada aplicação, isto é, os comandos que, quando forem executados, materializarão o serviço.

É por meio das Interfaces Humano-Computador (IHC) que os usuários utilizam os recursos de hardware, através do sistema operacional como o MS-Windows, Mac-OS, Androide e, também, interagem com os programas aplicativos como o Facebook, Linkedin, Gmail, Terra, Google, MS-World, Pokémon Go, Whatsap, Buscapé, Kabum, Snapshat, etc. Portanto, as IHC devem ser construídas de maneira a facilitar o uso dos softwares. Para tanto, a Engenharia de Usabilidade oferece princípios e processos para construção de IHC que possuam usabilidade, isto é, confira eficácia, eficiência e satisfação nas interações humanas com os softwares. Esta é a principal razão para a generalização do uso das TDIC na atualidade!

Voltando à hipótese elencada: “A ignorância sobre os sistemas computacionais, principalmente sobre o processo de desenvolvimento de software, aliado à facilidade de uso das tecnologias digitais, deixa os seus usuários vulneráveis a possíveis fins inescrupulosos e/ou doentios que estão invisíveis nas interfaces humano-computador”. Acredito que se os usuários de programas aplicativos atentassem para o fato que os serviços utilizados através do software foi previamente planejado e construído por programadores, eles os utilizariam com parcimônia, prevendo poder haver alguma funcionalidade invisível no programa utilizado, como, por exemplo, registrar suas condutas de uso, capturar seus dados pessoais e distribuí-los sem a devida autorização. Assim, o conhecimento explicitado acima já é suficiente para alertar as pessoas a interagirem com os softwares com criticidade e cautela. Quando se trata de software livre, isto é, o seu código está acessível para conhecer as funcionalidades embutidas nele, é possível analisá-lo a priori, para garantir que não há nenhuma funcionalidade escondida do usuário. Mas, quando o software tem o código fechado, isto é, não é possível conhecer as suas funcionalidades no código, os usuários ficam vulneráveis à situações de risco.

Como dito acima, esta análise se guiará pelo conceito de “esclarecimento” (aufklärung) proposto por Kant, como condição sine qua non para o homem sair da menoridade, ou seja, da incapacidade de pensar autonomamente, permitindo-se ser tutelado. Na época que Kant formulou o conceito (1783) ele elencou a religião, o estado e a ciência como os tutores do homem. Hoje, pode-se acrescentar à estes: as agências de desenvolvimento (Banco Mundial, FMI, OCDE etc.), a indústria e o mercado.

Retomando a hipótese, penso que a condição de menoridade dos usuários de programas aplicativos frente às tutelas da indústria de informática e do mercado, que vêm facilitando o acesso às TDIC, quer pelo preço cada vez menor e/ou pela facilidade de uso promovida pela usabilidade de suas IHC, encontra-os ignorantes com respeito ao que se discutiu acima sobre os sistemas de computação, levando-os a situação de uso acrítico das TDIC.

Kant também asseverou que a condição de menoridade é culpa do próprio homem que, por covardia ou preguiça, permite ser tutelado. Assim, a qualquer novidade apresentada por estes tutores – a indústria informática e o mercado, o homem se deixa ser levado pela propaganda ou ser atraído pela novidade. A falta de criticidade, o deixa confortável na situação de tutela, aliada à ignorância sobre o que são essas TDIC, que o impede de perceber que elas ditam comportamento e impedem o pensamento, como mitos modernos.

Portanto, somente a passagem do estado de menoridade para o de maioridade, quando o homem adquire autonomia de pensamento e adota a atitude filosófica, isto é, negar para perguntar, visando a sua reflexão, vai permitir a sua libertação de tutelas como estas. Kant chama a atenção sobre a permanência do homem no estado de menoridade:

Um homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento (Aufklärung). Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para a sua descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. (KANT, 2005, p. 69, grifo nosso)

Embora Kant afirme que seja cômodo ser menor, pois o homem assim o é por preguiça e covardia, a liberdade é a condição sine qua non para que ele use da sua própria razão para libertar-se e poder anunciar publicamente, como se faz aqui, o resultado de inquirições realizadas no âmbito pessoal.

Por isso, afirma-se com veemência que somente a educação desenvolvida com atualidade e com a qualidade de lhe conferir a eficácia que permita ao homem utilizá-la com propriedade, isto é, com conhecimentos úteis e aplicados de maneira contextualizada, é o principal vetor de liberdade intelectual do homem.

Por educação atual e de qualidade entende-se aquela que desenvolva nos aprendizes as competências intelectuais e sociais acompanhadas das habilidades que lhes permitam atuar como sujeitos protagonistas na sociedade.

Na sociedade do conhecimento, pensa-se a atitude filosófica como premissa para a vida com independência e livre arbítrio, associada a uma formação técnica eficaz. Em outras palavras, pensa-se em uma educação ancorada em modelos pedagógicos construtivistas que permitam ao aprendiz adquirirem modelos mentais flexíveis para que estejam em estado contínuo de metanoia, desaprendendo e aprendendo com autonomia, presteza e segurança. Uma educação que desenvolva uma ética de criticidade para com as tecnologias, tendo o esclarecimento como ferramenta, a fim de salvaguardar o homem das tutelas da indústria e do mercado.

*Henrique Nou Schneider - Professor no Departamento de Computação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFS. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Informática na Educação.

Referências:

- KANT, I. Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento? (Aufklärung). In: Textos seletos. Editora Vozes. 9ª Edição. 2005


Atualizado em: Qua, 05 de outubro de 2016, 16:18
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