Ter, 03 de janeiro de 2017, 17:06

Preservar o estado de bem-estar social
Ricardo Lacerda*

O necessário e inadiável ajuste fiscal vem sendo instrumentalizado como uma insidiosa estratégia para debilitar o estado de bem-estar duramente construído desde a redemocratização do país em 1985.

Ao final do período de transição, a “pinguela” que segmentos mais poderosos e influentes do establishment exigem que o governo Michel Temer atravesse em direção a um modelo de funcionamento da economia menos regulado, muitas das conquistas sociais elementares poderão ter sido sacrificadas em nome da austeridade e de supostos ganhos de competitividade.

Para deixar claro, não se trata aqui de defender ganhos extraordinários de categorias funcionais privilegiadas, que são mesmo indefensáveis, e sim de questionar a desconstrução acelerada das políticas públicas e do estado de bem-estar social consagrado na constituição de 1988. Há mais de um caminho para cortar despesas como há mais de uma possibilidade de reduzir os custos de transação da economia e aprimorar o funcionamento das instituições. E retirar direitos básicos da cidadania absolutamente não equivale a tornar a economia mais eficiente.

Não significam a mesma coisa fazer o ajuste fiscal e desestruturar as políticas públicas voltadas para as faixas mais pobres da população. Não significam a mesma coisa sanear as contas previdenciárias e desvincular os benefícios previdenciários do reajuste do salário mínimo, sacrificando as faixas de população mais vulneráveis. Não significam a mesma coisa buscar a sustentabilidade do sistema previdenciário adequando-o às mudanças demográficas e ajustando-o às perdas causadas pela recessão e penalizar amplas faixas da população e promover os interesses pouco disfarçados das instituições financeiras em expandir a previdência complementar.

Não se equivalem reduzir a burocracia e adotar outras medidas voltadas para melhorar o funcionamento das instituições e realizar a toque de caixa uma reforma trabalhista que retira garantias básicas nas relações de trabalho. Não significam a mesma coisa fazer valer o teto da remuneração do setor público e promover uma reforma do ensino médio autoritária e excludente.

Em suma, não se equivalem os custos relacionados ao ajuste fiscal e os custos decorrentes de uma transição para um modelo de sociedade ainda mais excludente do que a que temos no Brasil.

Os custos da transição

O processo de ajuste da economia brasileira se iniciou no final de 2014 quando o ainda virtual ministro Joaquim Levy anunciou medidas de correção nos preços administrados, como os de energia elétrica e combustíveis e no câmbio, ao que se seguiu a adoção do seu programa de contenção nas despesas públicas.

O impacto da inflação corretiva, potencializado pelos efeitos da estiagem sobre os preços agrícolas, em termos de corrosão do poder de compra das famílias foi tremendo: já no 1º trimestre de 2015 o consumo das famílias despencou incríveis 2,8%, em relação ao último trimestre de 2014, iniciando a série de sete trimestres de queda até o 3º trimestre de 2016, por enquanto.

Ao longo de 2015, o consumo das famílias acumulou uma queda, trimestre após trimestre, de 6,9%, perda que alcançou 9,8% no acumulado até o 3º trimestre de 2016. Nenhum analista, no mais amplo espectro político e teórico que possa ser considerado, antecipou uma reação de tal proporção. O fato duro e real é que nem o ministro Levy, nem o ministro Barbosa, que o sucedeu, tiveram a menor oportunidade de buscar o ajuste da economia. O esmagador cerco político ao governo inviabilizou qualquer tentativa de reequilibrar as contas publicas.

Diante da crise política, a Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), que deixara de crescer desde o 3º trimestre de 2013, na sequência das manifestações de ruas concentradas em junho e julho daquele ano, despencou impressionantes 18,4% ao longo de 2015, sempre na série dessazonalizada. A recessão foi agudizada pela desestabilização do governo causando sofrimento muito além do requerido a um ajuste fiscal em condições políticas menos dramáticas.

Com a posse do novo governo em maio de 2016, o Brasil vem promovendo a dolorosa transição que estamos presenciando e que deve se estender pelos próximos anos. O descaminho da economia nos últimos anos não pode ser divorciado do processo de desestabilização política.

Diante da hegemonia do discurso antipopular e excludente fortalecido na esteira da crise é impraticável estabelecer um debate franco sobre caminhos alternativos para realizar o ajuste fiscal. Resta apenas cavar trincheiras para preservar as conquistas mais significativas do estado de bem-estar. E lembrar que novas hegemonias serão formadas ou reelaboradas. E que nada será como antes, amanhã.

*Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Sergipe.


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