Sex, 05 de maio de 2017, 17:22

Alice no País das Maravilhas, o Levítico, o goleiro Bruno e o mistério do texto
Oscilene de Souza*

A Poetisa Iara Vieira (1949-2003)

Na época da graduação, fui aluna de Iara.

Com ela, aprendi o essencial à produção escrita:

“Não podemos dizer tudo no texto.

O texto há de ter o seu mistério.

É isso que faz o leitor ficar,

é isso que faz o leitor pensar”.

Cada dia mais atual, a história de Alice no País das Maravilhas, contada há 150 anos pelo professor de matemática Charles Lutwidge Dodgson às irmãs Alice, Lorina e Edith Liddell, às margens do rio Tâmisa, Oxford, continua despertando o fascínio de adultos e crianças. Com o pseudônimo de Lewis Carroll, o britânico Ddogson entraria para a história como um dos autores mais lidos do século. Contudo, na tradução da obra para outras línguas, a exemplo do português, a preocupação dos produtores ainda é com o ponto de partida e o de chegada, isto é, considerar tanto o contexto sociopolítico e cultural da época – Era Vitoriana, quanto o mal-estar de agora: a pós-modernidade, pois a literatura não engloba um texto encerrado em si mesmo. A literatura então reflete a heterogeneidade entre escritor, leitor, contexto, mercado, língua e produto. É um polissistema, como bem citou o sociólogo e crítico literário israelense Itamar Even-Zohar. Sem querer negar as boas intenções dos tradutores, a exemplo de Ana Maria Machado, que também fez uma tradução para o público infantil, o desafio de Even-Zohar esbarra nas convenções e crenças de cada época, quando ainda é preciso considerar para qual público servirá a tradução: se o adulto ou o infantil, haja vista a obra de Carroll atender à curiosidade de ambos os lados. Sendo o universo infantil, os cuidados vão desde o nível de linguagem até o expurgo de alguma parte considerada ‘inapropriada’ para as crianças de hoje, a exemplo da passagem em que Alice bebe conhaque. Traduções e falácias à parte, o fato é que a história de Alice brinca com a memória coletiva quando aborda, de forma curiosa, traços do folclore britânico, ou quando faz trocadilhos com as palavras e cria enigmas matemáticos, entre outros artifícios arquipensados pelo autor. Lewis Carroll cria, portanto, um novo jeito de contar histórias. No mundo encantado de Alice, humanos interagem com criaturas inusitadas e antropomórficas que, no contexto externo da obra, podem ser interpretados como alegorias do mundo real. No meio desse inventário de coisas, uma rainha louca governa esse mundo. Os temerosos súditos, obviamente, devem obedecer às ordens dessa governante, que não aceita os jardins de rosas brancas, a matriz de todas as rosas. Autoritariamente, a egocêntrica soberana dá ordens para pintar todas as rosas de vermelho. Aos que a desacatarem, a penalidade é a degola. Com essa imposição, o desejo oculto de arrancar a alma, porque a simples ordem de matar não alcançaria, talvez, o intuito macabro. Em outros termos, “cortar a cabeça” seria também um modo de silenciar o outro, de deter o corpo; haja vista o governante ter meios legais para assim agir, para experimentar o poder sobre o corpo do outro e fazer valer uma tirana alteridade... até que o psiquismo do ser, fragilizado em seu eu, rende-se à coroa. É suprimido da identidade, portanto, o direito de exercitar livremente a razão e, antagonicamente, suprime-se o poder do imaginário. Somos então compelidos à servidão voluntária. Na obra de Lewis Carroll, a busca de Alice atende ao dilema “Quem eu sou?!”, na qual a protagonista deve adequar-se às convenções sociais, às imposições do sistema. Em consonância às intempéries da loucura real, quem conduz Alice a esse mundo subterrâneo é um coelho, cuja simbologia pode oscilar, na mitologia pagã, entre a deusa da reencarnação – que conduz as almas a vales profundos, e entre ser um animal “imundo”, conforme narra o Levítico (11:6), livro sagrado da Bíblia. O Levítico, um dos cinco livros do Pentateuco, na verdade, é um código de leis que trata do culto a Deus e do sacerdócio; é, sobretudo, o chamamento do Senhor para a santidade do homem, quando esta só provém de d’Ele (Lv 11:44-45). A preocupação de Deus em afastar o homem de animais imundos para a saúde nota-se também para castigar a sua criatura, isto é, lembremos que, das dez pragas enviadas ao Egito por Moisés (Ex 8:1-32), cinco eram animais: rãs, piolhos, moscas, pestes dos animais e gafanhotos. E o Senhor salvou os seus escolhidos das desgraças trazidas pelos animais, ou da desgraça trazida pela soberba humana. Entre os homens, a atenção dada aos animais se faz de diversas formas: no consumo da carne, em rituais, em ornamentos, entre outros usos. Em se tratando de Alice no País das Maravilhas – e estejam atentos porque o nome “maravilhas” pode não representar coisas tão maravilhosas assim, o coelho também referenda, entre nós, o uso do pé de coelho como amuleto da sorte. Na contramão dessa prática, os adeptos, provavelmente, não devem saber que o diabo é quem guarda a sorte, enquanto Deus traz as bênçãos. Na dúvida desse pressuposto, desafio o leitor a procurar um padre, ou um pastor, que lhe certificará que determinados objetos usados para atrair sorte, ou afastar maus espíritos, a exemplo do cacto comumente chamado de “cabeça de frade”, é uma prática que não tipifica a fé em Deus, e sim, a falta de boas leituras, ou a presença de companhias duvidosas. Eu mesma nunca confiei na sorte. Lembro bem que, no dia em que prestei concurso para esta Casa, não disse a ninguém para onde estava indo naquela manhã. Motivo: sempre tive medo de onde pudesse vir a “Boa sorte”. Nesse aspecto, é melhor quebrar perna!** Pode ser mais lucrativo. Tirantes essas notas esdrúxulas, o mundo está realmente virando pelo avesso. Prova disso, seria a volta do goleiro Bruno, aquele que mandou matar a amante, Eliza Samúdio, em 2010, para não pagar a pensão do filho. Bruno, julgado pela mídia, pela sociedade e pela justiça, finalmente foi condenado, em 2013, pelo assassinato da ex-amante e ocultação do cadáver. Os detalhes desse crime hediondo chocaram o país. O corpo de Eliza nunca foi encontrado, o que seria impossível, já que parte deste foi emparedado e outra parte foi dada para os cães comerem, conforme consta nos laudos. Recentemente, o goleiro do flamengo retornou aos campos sob aplausos da torcida. Ovacionado?! “Creindeuspai”, disseram alguns mais tementes, seguindo o sinal da cruz. No texto de Carroll, é caindo em um buraco que Alice irá conhecer as maravilhas de um mundo mágico – um deslumbre para poucos. Na esfera do real, os tempos de agora vêm se mostrando um tanto perverso, devastando valores consagrados pelas lutas sociais, nos fazendo aceitar as arbitrariedades impostas como ‘justas’, nos fazendo ver heróis no lugar de criminosos. Lá, no mundo obscuro e encantado de Alice, o estilo nonsense de Carroll colocou em cena um gato que aparece e desaparece descaradamente e, para o que está mais ou menos, o felino inventa um beco sem saída. Trancafiados nesse tempo de agora, não menos nonsense do que o de Alice, cito-lhes o enigma do gato que ri:

“Aonde fica a saída?” – pergunta Alice ao gato que ria.

“Depende”, respondeu o gato.

“Depende de quê?, replicou Alice”.

“Depende de para onde você quer ir...”

De fato, o mundo de cá anda mesmo muito estranho. E, acaso não queiramos escrever um livro para Alice, aquele que não tem palavras nem figuras, aceite um aviso: reinvente-se, busque um caminho, encontre a saída e saia do buraco; ainda que tenha um coelho como guia.

*Oscilene de Souza é autora de “O livro do silêncio”, poesia, é professora especialista em Linguística e Mestra em Letras, UFS. Como secretária executiva, exerce suas atividades no Cesad, no qual também desempenha a função de professor voluntário.

**No meio artístico, principalmente no teatro, a expressão “Boa sorte” é vista como um mau agouro. Os atores preferem a expressão “Quebre a perna!”


Atualizado em: Sex, 05 de maio de 2017, 17:24
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