Qui, 02 de maio de 2019, 10:30

O lugar da escola entre a ciência, a moral e o trabalho
Saulo H. S. Silva

Desde os antigos, a ciência foi compreendida como um conjunto de procedimentos que conduz a um saber diferenciado daquele comumente assumido pela tradição, secular ou religiosa. Além de professar a busca por um conhecimento inédito, por outras explicações, essa procura, para ser científica e se diferenciar dos outros saberes, necessita permanecer de forma ininterrupta. Em outras palavras, o proceder científico exige uma constância sobre o risco de que a sua paralisação equivaleria ao fim das descobertas ou ao estabelecimento daquilo que deveria ser prévio como algo permanente, abraçando o dogma e inviabilizando a si mesma como ciência.

Dessa forma, a necessidade de tornar o ensino indissociável da pesquisa consiste em um paradigma da aprendizagem porque não se produz conhecimento científico sem pesquisa. E sem pesquisa a ciência está fadada à estagnação!

Sabe-se que a Idade Média, de um ponto de vista da evolução das descobertas paradigmáticas, foi um período de cerca de mil anos nos quais o aristotelismo respaldado pela imposição da Igreja e pelas adaptações de autores clássicos, como Cláudio Ptolomeu, reinou livremente sobre toda visão contraditória. Segundo o filósofo da ciência Paolo Rossi, a obra Almagesto de Ptolomeu “permaneceu por mais de um milênio como alicerce do saber astrológico e astronômico” (2001, p. 37). Isto porque o progresso da ciência exige a contradição entre as ideias, não é à toa que a ciência também é fruto do surgimento rudimentar da pólis grega, como advoga Jean-Pierre Vernant (1989, p. 41). Com o fim do império do dogma sobre a liberdade de pensamento, a Modernidade presenciou um desenvolvimento paulatino de descobertas importantes e de quebras de paradigmas dantes tão solidamente construídos, como o próprio sistema geocêntrico.

Além disso, a ciência não permite apenas desvelar o funcionar oculto da natureza, mas também preservar a própria sociedade política, manter a soberania de seu território e mesmo avançar suas bandeiras para além de suas fronteiras. Se uma nação sabe lidar melhor com a natureza circundante, se possui as ferramentas para a previsão de eventos naturais desastrosos (ou não), aprimorando aquilo que a natureza nos dá de graça, evidentemente, esse grupo social poderá desenvolver-se melhor que aqueles povos e sociedades que vivem apenas daquilo que a natureza lhes concede. Todas as nações que disputam a liderança geopolítica na atualidade são países que investiram muito em educação e em pesquisa científica enquanto prática imprescindível para o avanço econômico e a ampliação da influência política do Estado.

Se for verdade que a ciência consiste em um procedimento dinâmico que influência completamente a vida humana e se o seu desenvolvimento está atrelado à transmissão constante do saber para as novas gerações, resta indagarmos: em qual ocasião deve-se iniciar a participação dos jovens no fazer científico?

Antes do advento da educação pública, quando os primeiros educadores profissionais começaram a surgir, primou-se pelo início do processo educacional desde a infância. São diversas as razões desse entendimento, tanto pela defesa da necessidade de aprendizagem da moralidade, para fins privados ou públicos, bem como para permitir o tempo adequado ao desenvolvimento de habilidades físicas e intelectuais. Na atualidade, o processo de formação científica deixou de ser uma simples prática ou a reflexão de um ou outro pensador e se tornou tanto elemento fundamental de preocupação governamental quanto objeto de investigação sobre cujos problemas e propostas têm se debruçado gerações de intelectuais.

Sobre isso, e delimitando ainda mais a nossa temática, as grandes questões da educação formal básica em países constitucionalmente democráticos e laicos como o Brasil versam sobre: o que ensinar? Como ensinar? Qual a finalidade desse conteúdo? Entre as diversas formas de responder essas questões, vamos supor aquela que defende os valores mais óbvios, a saber, a necessidade da construção de um modelo de escola adequado à vida republicana. Pois, se toda ciência visa desenvolver o espírito da nação, todo ensino científico deve também ser um convite à virtude cívica, de modo que a formação moral secular esteja contida no ensino em geral. Seguindo essa orientação, a escola deve ensinar valores civis que ajudem as crianças a desenvolver a noção de cidadania, promover o avanço das ciências por meio da iniciação científica e não ser constituída como uma escola de treinamento para o trabalho.

Com efeito, por mais moralista que seja um sistema educacional, a formação para cidadania pertence às diversas disciplinas. Já a escola de preparação para o trabalho por meio da oferta de formações em artes manuais possui uma especificidade própria, e distinta do ensino científico tradicional, que pode tanto promover a desigualdade educacional quanto o afastamento da educação republicana de formar para a vida civil.

Saulo Henrique Souza Silva é doutor em Filosofia e docente do Colégio de Aplicação, do Programa de Pós-Graduação em Rede Nacional Para o Ensino das Ciências Ambientais (PROFCIAMB) e coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF), ambos da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: saulohenrique01@hotmail.com.


Atualizado em: Qui, 02 de maio de 2019, 14:31
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