Qui, 16 de maio de 2019, 14:51

As humanidades na contemporaneidade
Antônio Fernando de Araújo Sá

No tempo presente, as “narrativas da utilidade e da rentabilidade econômicas” (UMBELINO, 2018: p. 194) têm afetado, diretamente, a autonomia universitária, principalmente por conta de medidas de “racionalização” da gestão financeira ou mesmo de algum “austericídio”. O pano de fundo desse discurso está na suposta “incapacidade de a Universidade gerir a si mesma” para, “em seguida, propor o fim da Universidade pública gratuita” (PÉCORA, 2015: p. 43 e 51).

Em um contexto regressivo no campo dos direitos humanos e das condições sociais no Brasil, intervir, nesse debate, significa definir o papel das humanidades “como lugar de produção de saber e pensamento crítico e não como escola profissional que quase exclusivamente – e isso é grave – responde a solicitações de mercado e clientes” (LIMA, 2015: p. 9).

O imperativo de produzir na sociedade contemporânea tem implicado em certa incapacidade de cumprir as tarefas cotidianas no trabalho universitário, embotando nossa criatividade para interpretar o mundo que nos cerca, condição constitutiva das humanidades. A aceleração do tempo e a ideologia produtivista têm impedido de “oferecermos momentos de suspensão ou de os vivermos na constante culpa de não estarmos consentâneos com o ritmo do mundo” (LIMA, 2015: p. 9).

A narrativa de maior desempenho possível nas universidades traz um preço muito alto para a sociedade ao medir o sucesso educativo pela capacidade de formar para um “saber-fazer” imediato, mitigando, ou até negando, o espaço das Humanidades. Somente desacelerando, podemos recuperar o pensamento crítico e a reflexão mais aprofundada diante do inesperado, da diferença e da novidade (UMBELINO, 2018: p. 196).

Isso não implica negar que a nossa percepção atual do tempo presente está marcada pela aceleração e mundialização, inexoravelmente ligadas às revoluções técnicas e científicas, com suas vertiginosas descobertas, e a avalanche de acontecimentos cotidianos presente nos meios de comunicação. Esse mundo complexo tem desafiado ao indivíduo, tornando uma demanda social a necessidade de um “conhecimento explicativo” para se entender o presente (CUESTA, 1993, 40).

Para tanto, os ensinamentos das Humanidades podem contribuir para a compreensão desse tempo de crise, em que a massificação e a mundialização da história desenraizam o cidadão dos grupos humanos e o situa num espaço mundial, fazendo-o sentir a necessidade de construir uma memória coletiva e um marco de identificação pessoal e coletiva.

Ao trazer o sentido do respeito ao outro, de lidar com a alteridade e a diferença cultural, histórica e religiosa, as disciplinas humanísticas (história, da geografia, da literatura, das línguas, da sociologia, da filosofia, das artes) estabelecem um diálogo intercultural que “não elimina o conflito, mas o acolhe como via para alcançar lugares de encontro reforçado” (UMBELINO, 2018: p.200). Exatamente porque o “saber das Humanidades é um saber dialógico, assente numa atitude de interrogação e de escuta, atento não só as zonas de conhecimento que a razão vai estabelecendo, mas também às áreas de desconhecimento que marcam a nossa relação com o mundo que queremos conhecer, conscientes dos nossos poderes e dos nossos limites como seres humanos” (ANDRÉ, 2011: p. 296).

Para além do paradigma da produtividade, da técnica, da máquina, as Humanidades podem nos trazer “a alternativa de um paradigma dominado pelo jogo, pela imaginação, pela liberdade criadora do homem na transgressão dos limites redutores a que a técnica correria o risco de o circunscrever” (ANDRÉ, 2011: p. 298).

Nesse sentido, um retorno ético à literatura pode proporcionar uma resposta ao discurso utilitarista do mundo contemporâneo, na medida em que oferece meios de “preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida”. Desse modo, a literatura “nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos” (CAMPAGNON, 2006: p. 47).

No mesmo diapasão, Serge Gruzinsky dissertou sobre a utilidade (ou não) da história no mundo contemporâneo, trazendo alguns impasses do ensino de história no contexto de aceleração do tempo, proporcionado pela mundialização das indústrias culturais e a velocidade dos meios de comunicação. Explorar os presentes que nos assaltam por todos os flancos e as diferentes formas de passados produzidas pelas indústrias culturais talvez um caminho interessante, já que o mundo acadêmico teima em não leva-los em consideração, demonstrando que essa produção contemporânea põe em cena nosso presente, inclusive “com um olhar crítico e construtivo que nos é mais necessária do que nunca” (GRUZINSKI, 2018).

Para Lynn Hunt (2018), a história está em questão em todos os lugares. Políticos mentem deslavadamente sobre fatos históricos, há uma disputa memorial de grupos em torno de monumentos históricos e tentativas controladoras do conteúdo dos livros didáticos de história. Também proliferam as comissões de verdade em todo o planeta. Vivemos uma obsessão pela história, mas também uma profunda ansiedade sobre a verdade histórica. A historiadora se pergunta se é tão fácil mentir sobre a história, se as pessoas discordam sobre monumentos ou o que os livros de história devem transmitir, e se são necessárias comissões para descobrir a verdade sobre o passado, pode haver algum tipo de certeza sobre a história?

A busca pela verdade sobre o passado é um processo contínuo de descoberta, o que pode sugerir revisões históricas constantes. Um exemplo disso é a crítica ao eurocentrismo na história, tão bem apontado por Gruzinski, que propõe que, ao invés da amnésia, temos hoje uma superabundância de passados interpelando os presentes do mundo.

Por garantir a apresentação honesta das evidências, a história pode contribuir para a promoção da humildade sobre nossas preocupações atuais, exercendo uma atitude crítica em relação ao chauvinismo e uma abertura para outros povos e culturas. Por certo, a “história é a nossa melhor defesa contra a tirania" (HUNT, 2018).

Caro leitor, nesse momento difícil de ataque às universidades públicas no Brasil, serão mesmo as humanidades inúteis?

*Antônio Fernando de Araújo Sá é professor do Departamento de História da UFS.

**Agradeço as observações críticas dos professores Bruno Alvaro, do Departamento de História, e Péricles Moraes, do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal de Sergipe, que contribuíram para melhorar o texto. Não custa lembrar que a responsabilidade das ideias aqui exposta é, exclusivamente, do autor.

Bibliografia

ANDRÉ, João Maria. O papel das Humanidades na sociedade contemporânea. Biblos: Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, n. s. (2011), p. 287-304.

COMPAGNON, Antoine. Literatura Para Quê? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009.

CUESTA, Josefina. Historia del presente. Madrid: EUDEMA, 1993.

GRUZINSKI, Serge. Para qué sirve la historia? Madrid: Alianza Editorial, 2018 (E-book).

HUNT, Lynn. History: why it matters. Cambridge; Medford: Polity Press, 2018.

LIMA, Isabel Pires de. O tempo dos “inutensílios”: o lugar das humanidades na contemporaneidade. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2015 (Coleção Orações de Sapiência).

PÉCORA, Alcir. Letras e Humanidades Depois da Crise. Revista da ANPOLL, n. 38, p. 41-54, Florianópolis, jan./jun. 2015.

UMBELINO, Luís Antônio. O fim das humanidades: ensino e aprendizagem em época de crise. Cadernos de Pesquisa. V. 48, n. 167, p. 192-202, jan./mar. 2018.


Atualizado em: Qui, 16 de maio de 2019, 15:00
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