Qui, 22 de novembro de 2018, 16:17

O nome, a significação e a memória
Edmilson Menezes

Inicialmente, gostaria de agradecer à Reitoria da Universidade Federal de Sergipe, que me distinguiu com o honroso convite para este pronunciamento. Também, minha palavra inicial de agradecimento dirige-se aos professores Samuel Albuquerque e Sura Carmo pela cooperação na concepção e organização da Exposição “Luciano Duarte e a UFS” (que hoje é inaugurada), a Ednalva Freire Caetano e ao professor Péricles Morais. A este pelo apoio logístico e àquela pelo apoio institucional e pela convocação à tarefa de montar a referida exposição.

No dia 03 de outubro de 1992 ingressei no Departamento de Filosofia desta universidade na condição de Professor Assistente concursado. Dias antes havia recebido minha portaria de nomeação e, para minha surpresa, por meio dela, fui informado que estava sendo nomeado para a vaga da cadeira decorrente da aposentadoria do Prof. Dr. Luciano José Cabral Duarte. Além daquele sentimento inicial, outro me assomou no mesmo instante: o de uma enorme responsabilidade por saber que a história havia ligado o meu nome ao pioneirismo filosófico, que se confunde com a própria Universidade Federal de Sergipe, pois foi aquele professor um dos principais mentores de sua criação. Passados exatamente 26 anos, cumpridos no último dia 03 de outubro de 2018, os mesmos sentimentos aqui me invadem, pois se trata de apresentar aquele importante laureado e de revisitar algumas questões. O que pode ainda nos ensinar uma obra ou seu autor, o que pode nos ensinar um intelectual, qual seu poder de interferência, o que pode instruir sua memória? Segundo penso, muito; e de modo especial, em tempos de empobrecimento da inteligência, de valorização do iletrado como herói mítico, enfim, de bizarras expansões do “saber” e de “universidades acuadas”. De um quadro intelectual sério é possível, invariavelmente, extrair uma proveitosa reflexão e daqueles que, no dizer de Hegel, “fizeram-se homens em meio das tempestades da época”[1] sempre é admissível colher algum exemplo.

Hoje nos reunimos em torno de um das maiores intelectuais do cenário da segunda metade do século XX sergipano. O Homenageado nasceu no dia 21 de janeiro de 1925 na cidade de Aracaju, teve como genitores José Góes Duarte e Célia Cabral Duarte. Seus irmãos: Carlos José Cabral Duarte e Carmen Dolores Cabral Duarte. Foi ordenado Sacerdote em 1948, também em Aracaju. Em 1951, foi designado Diretor da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe. De 1954 a 1957, estudou no Institut Catholique de Paris e na Sorbonne, recebendo da primeira instituição, em 1956, o diploma de Licence en Philosophie Scolastique; da segunda, a habilitação Licencié-ès-Lettres-Philosophie, com menção honrosa, e seu título mais importante, o de Doutor em Filosofia, obtido com distinção máxima, Très Honorable, com a tese La Nature de l’Intelligence dans le Thomisme et dans la Philosophie de Hume. É o primeiro Doutor em Filosofia de Sergipe, no sentido estrito e hodierno de doutoramento, com curso específico e tese defendida e aprovada. Em 1958, foi nomeado Assistente Eclesiástico da Juventude Universitária Católica (JUC). Como bolsista da Embaixada Norte-americana, foi conhecer o sistema universitário de ensino dos Estados Unidos. Como presidente da Câmara de Ensino Superior do Conselho Estadual de Educação (SE), liderou, de 1963 a 1967, o trabalho para criação e implementação da Universidade Federal de Sergipe, na qual foi membro e primeiro presidente do seu conselho diretor. Ainda nessa instituição de ensino superior foi professor e chefe do Departamento de Filosofia e dela recebeu, por meio dos seus Conselhos Superiores, as Medalhas de Mérito Cultural, em 1972 e 1991, e o título de Doutor Honoris Causa, em 1998. Foi membro do Conselho Federal de Educação e agraciado, pelo Ministério da Educação da França, com a honraria Palmes Académiques. Membro da Academia Sergipana de Letras, na qual ocupou a cadeira 18, Dom Luciano Duarte foi detentor de uma produção literária extremamente fértil. Publicou: O Banquete, de Platão (Separata da Revista da Faculdade Católica de Filosofia, n. 1, 1961); Viagem aos Estados Unidos (Sociedade de Cultura Artística de Sergipe, 1962); Europa e Europeus (Flamboyant, 1961); Índia à voo de pássaro (Sociedade de Cultura Artística de Sergipe,1970) Estrada de Emaús (Vozes, 1971); A igreja às portas do ano 2000 [Coletânea de artigos publicados originalmente na Folha de São Paulo, n’ O Estado de São Paulo e no Jornal do Brasil] (Secretaria de Estado da Cultura SE, 1989); Concílio Vaticano II: os novos caminhos da cristandade [Coletânea de crônicas e reportagens originalmente publicadas na revista O Cruzeiro] (J Andrade, 1999); A natureza da inteligência no Tomismo e na filosofia de Hume, Tradução de Antonio Carlos Mangueira Viana [Tradução do original La Nature de l’Intelligence dans le Thomisme et dans la Philosophie de Hume, tese doutoral defendida na Université de Paris - Sorbonne em 1957]. (J Andrade, 2003); Escritos Filosóficos: Sócrates, Kant e Bergson (IDLD/ J Andrade, 2007); Escritos sobre Educação (IDLD/ J Andrade, 2008); Hungria – 1963 Registros de Viagem (IDLD/ J Andrade, 2008); Credo (IDLD/ J Andrade, 2012); Reflexões (IDLD/ J Andrade, 2014). Escreveu, ainda, inúmeros artigos para os seguintes órgãos: Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Revista Veja, entre outros. Merecem também referência a biografia, escrita por Giselda Morais, D. Luciano José Cabral Duarte – Relato Biográfico (IDLD/ J Andrade, 2008) e a coletânea, organizada por Carmem Duarte, Memória da PRHOCASE (1968-1988) (IDLD/ J Andrade, 2015), registro do trabalho desenvolvido por Dom Luciano em torno da reforma agrária em Sergipe.

Toda essa vasta produção expõe e traduz a multifacetada capacidade de Luciano Duarte. Aqui, gostaria, nestas rápidas palavras, de me deter apenas em uma dessas faces, pois ela nos dá a dimensão exata do porquê a Universidade Federal de Sergipe reunir-se nesse preito: a experiência intelectual do professor e do filósofo. Foram trinta e três anos de atividade da inteligência que refletem certa amostragem de um período histórico importante do Brasil e de Sergipe.

O docente, testemunha, como personagem ativo, o momento da implantação do ensino superior das Humanidades em Sergipe, em 1953, com a criação da Faculdade Católica de Filosofia (FAFI). Por que uma Faculdade de Filosofia? A resposta é precisa e incontornável: é preciso aprender a pensar e, com isso, iniciar-se na busca da verdade. Atesta Duarte: “Antes de lhe ensinar Teologia, é preciso ensinar o homem a filosofar”. Uma Faculdade de Filosofia procurará garantir uma especificidade para este ramo do saber, isto é, garantir o que lhe é próprio e de direito. Para isto, o primeiro dever de um filósofo é o de ser consequente, diz Kant. Ser consequente não significa de pronto e essencialmente ser lógico, no sentido vulgar. Sem dúvida, o guardião do pensamento deve evitar uma coisa e seu contrário, ainda que em certos momentos isto seja necessário. Ser consequente significa ser honesto intelectualmente, quer dizer, estabelecer de imediato o campo de atuação de sua ciência e aí influir com probidade. Kant percebe que a ausência desta honestidade gera a confusão e o estilo pretensioso que, por sua vez, fomentam a aversão. Talvez não fosse demasiado afirmar que no Brasil do século XIX e início do século XX a filosofia possuía traços singulares que a assimilam à erudição pura e simples, sem que um aspecto mais técnico lhe ocupasse as preocupações. A produção desse período é, em sua maioria, diatribes ou então apologias. A história da recepção das ideias filosóficas em Sergipe, nos permite estender o raciocínio acima para as terras Del Rey. Com efeito, um marco para a inversão de perspectiva metodológica da produção filosófica em Sergipe encontra-se na tese de doutorado do Prof. Luciano Duarte. Sem dúvida, estamos diante do primeiro trabalho que escapa a um improviso que confunde beletrismo com filosofia, e ecletismo com pensamento filosófico em si, duas tendências muito presentes nos períodos acima referidos. A tese do Prof. Duarte representa uma nova etapa para os estudos rigorosos em filosofia em terras sergipanas, quero dizer, que ela representa e traduz uma forma técnica de fazer filosofia.

Tentando, pois, ir ao encontro da probidade intelectual, a filosofia, em solo sergipano, nasceu carreando consigo as humanidades, às quais conferia unidade reflexiva e pedagógica. Segundo o então Padre Luciano, o momento da implantação da FAFI coincide com o desejo de ampliação dos horizontes da cultura e do desejo de acréscimo do nível do pensamento e da investigação rigorosa. Não me parece temerário afirmar que, em Sergipe, a filosofia carreia não só o desenvolvimento das humanidades, mas a evolução de um espírito universitário. Trata-se, sem embargo, de uma herança moderna. O filósofo Luciano Duarte tinha plena consciência de que a Modernidade filosófica justificou a universidade[2] e concedeu-lhe um alicerce fincado na filosofia, um parâmetro que inclui essa disciplina como a guardiã dos elementos de significação e da estrutura do conhecimento ali produzido. E, com isso, se enfatiza como essência da instituição universitária, em lugar da disposição funcionário-instrumental da universidade como provedora apenas de mão-de-obra profissional, a autonomia especulativa do saber, indispensável para o desenvolvimento cuja primazia pertence à sociedade e não ao Estado.

Infelizmente, a universidade, seja como aparelho pedagógico, seja como interrogação crítica, deixa, pouco a pouco, de ser o princípio de influência do Estado e do povo. O nosso homenageado não pôde acompanhar esse movimento (para não dizer declínio!), faleceu, após um longo inverno de achaques à sua saúde, em 29 de maio de 2018.

Por fim, é preciso nos perguntar por que homenageamos, por que tentamos registrar algo na forma de uma placa ou da aposição de um nome? Sabemos, desde Aristóteles, que o que não tem nome não existe. Se algo não tem nome não podemos qualificá-lo, não podemos atribuir-lhe um significado intencional. O nome não se refere ao tempo, como acontece com o verbo, pois nenhuma das partes do nome tem significado disjunto do próprio nome. No caso dos nomes ou expressões compostas, a parte contribui para a acepção do todo, que, se separado daquela parte, perde em significado. Hoje se inaugura a composição entre os nomes Biblioteca e Luciano Duarte. O significado que aí se instala – enquanto espírito não somente objetivo, funcional, residindo no simples uso do objeto concernido – reenvia-nos a um intenso processo de comunicação – cerne da função exercida pelo livro e pela leitura.

Talvez, essa função precípua seja a responsável por certo “magnetismo” que envolve a reunião de livros sob o nome de biblioteca, seja ela pública ou particular. Uma biblioteca carrega consigo uma história. Cada livro parece trazer embutido um passado, uma vida, ambos ligados à sua aquisição e que não são transparentes a qualquer um que a visita. A biblioteca foi, no passado, e será, no futuro, dedicada à conservação de livros; portanto, é e será um templo da memória. As bibliotecas, ao longo dos séculos, têm sido o meio mais importante de conservar nosso saber coletivo. Foram e são ainda uma espécie de cérebro universal no qual podemos reaver o que esquecemos e o que ainda não sabemos. Uma biblioteca é a melhor imitação possível, por meios humanos, de uma mente divina, na qual o universo inteiro é visto e compreendido ao mesmo tempo. Uma pessoa capaz de guardar em sua mente a informação suprida por uma grande biblioteca emularia, de certo modo, com a mente de Deus. Em outras palavras, inventamos bibliotecas porque sabemos que não possuímos poderes divinos, mas tentamos ao máximo imitá-los, lembra-nos Humberto Eco[3]. Por isso, toda biblioteca é um lugar de “veneração”, de “respeito”, de silêncio. Mas, também por esse mesmo motivo, as bibliotecas parecem estar em contradição com o nosso compasso cotidiano, que não conhece os tempos mais longos e ignora olímpico o significado do otium literatum; e , em contradição também se encontra com o ecletismo inócuo da nossa cultura, que reduz tudo a uma uniformidade desprezível e enganosa, na qual os espíritos se fundem num mesmo molde e rejeitam a comunicação singularíssima própria da escrita literária.

Uma última palavra – e com ela voltarmos ao questionamento inicial deste pronunciamento – : ao final, tem-se a certeza de que estamos diante de um nome que, apesar da falta da unanimidade, encontra-se associado ao combate contra a ligeireza mental; nome unido à ousadia investigativa. Aprendemos que um intelectual não se improvisa e que, nos campos da Geistswissenschaft, a preguiça e a covardia continuam sendo duas grandes inimigas do mundo universitário. Escrever essas poucas páginas sobre Luciano Duarte foi um exercício pessoal de elaboração do passado, quer dizer, de esclarecimento, uma inflexão em direção ao sujeito, reforçando a sua autoconsciência e, por esta via, também o seu eu. O exercício da elaboração do passado revela-se como um contraveneno dirigido à terrível imagem de uma humanidade sem memória. A sociedade contemporânea encontra-se subordinada de um modo universal à lei da troca, do igual por igual de cálculos que, por darem certo, não deixam resto algum. Conforme sua própria essência, a troca é atemporal. A memória, o tempo e a lembrança, como nos diz Adorno, são liquidados pela própria sociedade burguesa, como se fossem uma espécie de resto irracional. “Quando a humanidade se aliena da memória esgotando-se sem fôlego na adaptação ao existente, nisto reflete-se uma lei objetiva de desenvolvimento.” [4] A memória é esse cabedal infinito, do qual, aqui, só registrei um fragmento, mas nele o passado conserva-se, atua no presente como lembranças independentes de quaisquer hábitos, lembranças isoladas, singulares, que constituem autênticas ressurreições do passado – sempre passível de elaboração. E todos nós conhecemos as consequências nefastas associadas a uma humanidade que despreza a história e entende que a memória deve receber o conforto do esquecimento.

*Discurso proferido pelo professor do Departamento de Filosofia da UFS Edmilson Menezes por ocasião da aposição do nome Dom Luciano José Cabral Duarte como designação da Biblioteca Central da Universidade Federal de Sergipe.

[1] HEGEL, G.W.F. Introdução à História da Filosofia. In: Textos Seletos. Trad. de Antonio P. de Carvalho e outros. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 324. (Coleção “Os Pensadores)

[2] Sobre isso, ver os textos de Paulo Arantes e Franklin Leopoldo e Silva em Humanidades, Pesquisa e Universidade. São Paulo: FFLCH/USP, 1996.

[3] ECO, Humberto. Conferência na Biblioteca de Alexandria, no Egito, 2003.

[4] Cf. ADORNO, T. O que significa elaborar o passado. In: Educação e Emancipação. Trad. De Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p.48.


Edmilson Menezes (foto: Paulo Marques/bolsista Ascom UFS).
Edmilson Menezes (foto: Paulo Marques/bolsista Ascom UFS).
Atualizado em: Qui, 22 de novembro de 2018, 16:27
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