Seg, 11 de março de 2013, 08:43

A poesia que se faz necessária
A poesia que se faz necessária

Luiz Eduardo Oliveira


Henry Louis Mencken (1880-1956), num dos seus mais corrosivos artigos, afirmou que escrever poesia, até mais ou menos os dezessete anos de idade, é algo natural, resultado de nossas primeiras ferroadas espirituais. Segundo ele, se depois dessa idade o sujeito continuasse escrevendo poesia, aí já seria um caso de retardamento mental. Com efeito, muitos consideram a arte da prosa de ficção, especialmente do romance, como sendo superior à da poesia, levados talvez pela frequência e facilidade com que se escreve poesia, seja ela recitada, musicada ou impressa. Mas ao contrário do que faz supor essa reflexão leviana, os poetas mais longevos produzem sua grande poesia somente no fim da vida, quando não se tornam velhos babões, poetas “oficiais” ou conservadores. Não se encontram muitos Rimbauds facilmente por aí. Ser um poeta oficial como Bilac é muito difícil. Mais ainda ser um injustiçado como Cruz e Souza, ou alguém tão fértil quanto Drummond, ou tão cerebral quanto Cabral, e por aí vai...


A poesia é necessária? Passei um tempo sem saber, pois poesia para mim é trabalho, e lido quase sempre com o cânone, com os clássicos – os meus ossos de ofício, como professor de literatura da UFS. Nesses tempos em que a música carece de poesia, em que a (nova) MPB (re)inventa a arte do trocadilho como se fosse uma grande novidade, em que as bandas se valem mais do visual do que da música, ficando as letras em terceiro plano, foi revelador o que me aconteceu com a leitura de Poemas Passageiros (2011), de Jeová Santana.


Acompanho a produção literária de Jeová Santana desde os seus tempos de estudante de Letras, na segunda metade dos anos oitenta, quando ele era o nosso poeta oficial. Jeová, à época, já publicava nos jornais locais, no Caderno de Estudante da UFS, tinha sido premiado em alguns concursos e figurava em algumas antologias, locais e nacionais. Tive a oportunidade de ser seu contemporâneo, embora ele tenha entrado e se formado antes de mim. Mantivemos nossa amizade e tivemos depois uma experiência de vida e tanto, na época em que fazíamos Mestrado em Teoria Literária na Unicamp e dividíamos um apartamento no centro de Campinas, no final dos anos noventa. Nossos caminhos continuaram se cruzando, se afastando, voltando... Enfim, temos história. Temos até um poema composto a quatro mãos, intitulado “Crepuscolia” e publicado em 1988, no suplemento literário da Gazeta de Sergipe.


Eu sempre disse que Jeová era mais poeta do que qualquer outra coisa, dentre suas diversas atividades, incluindo a de professor – da Universidade Estadual de Alagoas e da rede estadual de Sergipe –, radialista, letrista de música e cronista ocasional. Todos se espantaram quando perceberam que sua obra, ao contrário do que se esperava, seria marcada pela prosa, e não pelo verso. Assim, em 1993 iniciou sua produção narrativa, com a coletânea de contos Dentro da Casca. Em 2002 publicou A Ossatura. Em 2006 saiu Inventário de Ranhuras, que considero seu ápice na arte do conto. Deixei meu testemunho crítico com relação à sua contística em “O silencioso ofício de Jeová Santana”, artigo publicado no Jornal da Cidade em duas partes, nos dias 28 e 29 de maio de 2003, e em “Entre cascas, ossaturas e ranhuras: a contística de Jeová Santana”, texto publicado no Cinform do dia 10 de abril de 2006.


Jeová deixou para publicar sua poesia na idade madura, depois dos arroubos da juventude, das ferroadas espirituais da segunda adolescência, que todo homem tem até completar 40, e o que saiu foi uma poesia sofisticada, serena e cheia de fatias de vida. O livro, publicado pela editora da UNEAL, tem um projeto gráfico sóbrio e elegante, com uma foto de passagens aéreas que dá o tom da coletânea: a viagem, o deslocamento e o distanciamento de si e dos outros. O tom elogioso do texto da orelha do livro, escrito pelo seu amigo jornalista e poeta Jozaílto Lima, bem como a análise acurada do prefácio, intitulado “Trânsitos Poéticos” e escrito pela minha colega e amiga Susana Souto, professora de literatura da UFAL, dão conta, cada um a seu modo, da temática e densidade da poética de Jeová Santana, bem como de sua inserção na tradição da poesia moderna brasileira.


A coletânea é dividida em duas partes: “Anotações I” e “Anotações II”. Embora o tema definidor do livro seja a viagem, os poemas seguem vertentes variadas. Jeová é um poeta sofisticado por várias razões. Ao que parece, depois de seus anos de Campinas e São Paulo, e a partir desse circuito Aracaju-União dos Palmares-Maceió que agora vive, depois de obter seu título de Doutor em Educação na PUC de São Paulo, o poeta renasceu historiador, aspecto que vinha sendo trabalhado em seus contos em nível local e que se manifestava em narrativas que rememoravam uma Aracaju antiga, ou a Maruim de seu nascimento, ou o Rosário do Catete de sua infância. O poeta Jeová Santana, no entanto, é mais historiador do que o contista, pois reflete e relaciona episódios e situações em contextos maiores, nacionais, até mesmo porque o eu poético viageiro de Jeová não tem um espaço nem um tempo definidos, embora na maioria dos poemas apareça a data e o local de sua composição, geralmente um bar de São Paulo ou de Aracaju.


O livro abre com “PA-TRí-CIA”, que eu já conhecia, e que anuncia uma vertente toda original do poeta, recorrente em vários poemas desta coletânea: um erotismo verbal que se materializa numa espécie de descrição minuciosa do som, dos sentidos e das sugestões que emanam de cada sílaba, como se o poema celebrasse o gozo fonético-fonológico das palavras. Esse grau de conscientização metalinguística se mostra visível em muitos outros poemas, o que demonstra não só o domínio técnico do poeta, mas também sua erudição literária, na medida em que articula o seu discurso com o da tradição. Mas isso não torna a poesia de Jeová Santana espalhafatosa ou verborrágica. Ela se mostra, ao contrário, de uma contenção quase cabralina, como em “A Língua”.


Outro aspecto anunciado pelo primeiro poema, e que se evidencia na medida em que o leitor avança sua leitura, é a musicalidade. Desde os tempos de estudante de Letras, Jeová costumava compor letras para músicas dos colegas, e também compunha canções de cabeça, cantarolando, sem precisar tocar qualquer instrumento. Nesse livro a musicalidade está presente em tudo, e não somente nas referencias explícitas a músicos locais, nacionais e internacionais, mas sobretudo no uso habilidoso das rimas toantes, das aliterações, do ritmo sincopado de cada verso, além da sintaxe lapidada e econômica, desbastada de suas arestas, preposições e adjetivos inúteis. Jeová se mostra virtuoso no exercício cabralino de substantivação de adjetivos e adjetivação de substantivos. Seus versos não são longos. São curtos e carregam sentidos latentes e explícitos, num processo intertextual que se configura como uma espécie de dialogismo interno de cada poema.


Não é desconhecida a sensibilidade e fraqueza do autor pelas mulheres, que são sempre idealizadas e quase santificadas em alguns poemas. Quando as musas não têm nome – o repertório das mulheres homenageadas, que vão desde colegas, amigas ou namoradas de tempos antigos até nomes conhecidos da música, do cinema e da literatura e mesmo das novelas globais, como “Diante do Esplendor de Luana Piovani” ou “A Câmera Lambeu Andrea Beltrão”, sem esquecer das putas que fazem parte do anedotário sergipano, em “Filhas de Deus”–, surgem fugidias e quase etéreas, como a menina que aparece no quintal em “Tomando Café com Miles David”, ou as mãos femininas cuidando das verduras na pia, que o poeta vislumbra no Bar do Alemão, em São Paulo, em “Fuga para Cravo e Tempero”. Mas o seu fascínio pelas mulheres assume outras formas, chegando até mesmo a dessacralizar a musa, que se encontra fazendo xixi, emudecendo a poesia, embora provoque no poeta um “Poema à Revelia”. Em “Oráculos”, trata-se de um fim de caso, quando a palavra corta mais fundo do que faca, como o poeta explica. Desse modo, as musas são muitas e variadas. São romanticamente vaporosas, mas também se desidealizam, se desplatonizam, erotizando-se. Essa vertente alcança picos de sensualidade carnal e metafórica em “Ode ao Umbigo”.


A questão metalinguística é explorada com mais vagar em poemas como “Urubu”, que o poeta apresenta brilhantemente como “uma vaia, vinda do céu”, e em “Certas Palavras”, que trata do gume semântico de certos ditos, em certos contextos. Em “Invocação”, dedicado a Maria Lúcia Dal Farra, o poeta reflete acerca da discrepância entre a “voz melíflua” da professora – da Unicamp e da UFS –, crítica e poeta paulista e a “língua dura da gente de cá”, da mesma forma que “Em Torno da Palavra Cabrunco”, no qual o poeta afirma que “o povo foge da proparoxítona como o diabo da cruz”. A persona poética do conquistador se revela em “Poeminha do Desespero”, um curioso diálogo que o poeta trava com uma musa imaginada e inominada, embora não a trate com o devido respeito. “Para Ninguém Ouvir” apresenta o Jeová dos primeiros tempos de poeta, ainda romântico, embora cheio de imagens duras, de “ossos & pedras”. O último poema dessa série dedicada às mulheres é “O Romântico Incurável”, marcado pela ironia.


A cor local do espaço poético de Jeová Santanta é sempre enfatizada nos poemas, tanto os que falam de São Paulo quanto os que têm como cenário Rosário do Catete, o Rio de Janeiro e Maceió. Merece destaque o lindo poema “A Ponte e o Vazio”, que homenageia um dos mais conhecidos monumentos de Aracaju, a Ponte do Imperador, que, “ao ligar-se ao nada, beira a margem da poesia”.


Um gênero novo que o poeta experimenta é a poesia infantil, que se manifesta nos poemas dedicados às crianças. Em “A Peleja”, dedicado a seus três rebentos e aos dois de nossa amiga e colega Chrystianne Gally, a confusão de imagens sugeridas pelos jogos de palavra causa um efeito até lisérgico, bem ao modo do ritmo alucinado da imaginação infantil. Isso mostra que o poeta nem sempre encarna Jeová Santana, fazendo-se menino muitas vezes – sobretudo em suas rememorações da infância, flagradas em muitos poemas –, e noutras – como no já referido “A Língua” – assume o discurso feminino, tal como Chico Buarque, um dos seus grandes ídolos.


Um outro grupo de poemas concentra-se sobre o tema literatura. Neles o poeta exercita sua crítica, compartilhando com seus leitores suas impressões e o embasamento literário de sua poética, que já se apresenta nas epígrafes, como observou Susana Souto, no Prefácio. A série começa com “As Flores do Bem”, dedicado ao ex-professor de literatura da UFS e escritor conterrâneo Antonio Carlos Viana. Nesse poema estão em foco a pessoa do escritor, “o homem-palavra a desnudar-se”, em sua casa próxima ao mar, e um gato que é tão dono da casa quanto ele. Na mesma linha está o já referido “Invocação”, dedicado à pessoa de Maria Lúcia Dal Farra. Em “O Poeta”, as ruminações relativas à passagem do tempo se materializam nas figuras do poeta jovem, Rimbaud, e do poeta maduro, Manoel de Barros. “Engenhagem”, dedicado a Francisco J. C. Dantas, também ex-professor de literatura da UFS e escritor conterrâneo, relaciona a língua travada da pessoa Francisco Dantas com sua prosa que “destrava mundos”, compondo um bem cuidado quadro imagético a partir das referências que são feitas dos romances desse “senhor dos engenhos”. Em “Casario”, dedicado ao amigo e poeta contemporâneo e conterrâneo Ronaldson Sousa, Jeová descreve metaforicamente o seu trabalho com a fala da forma, que “cobre de sol” os cabelos das moças. “Não Rio” é uma bela homenagem a Mário de Andrade, que, por sua vez, é precedida por um sintético passeio pela tradição da poesia moderna brasileira, de Bandeira, passando por Cabral, até Manoel de Barros. A tradição poética é retomada em “Confissão (Reescrita)”, agora assumindo uma atitude explícita e ostensiva de sua auto-inserção nela. Assim, depois de passear pelos nomes de Drummond, Bandeira e Pessoa pela negativa, citando indiretamente Cabral – “feito galos severinos” –, o poeta afirma: “também passei por aqui”.


Os momentos mais fracos do livro aparecem quando o poeta experimenta fazer uma crítica social de feição jornalística, como em “Oração dos Meninos do Brasil” I e II”, “A Galera”, “Pequeno Improviso para um Rap Rapadura” e mais um grupo de poemas dedicados ironicamente ao sensacionalismo jornalístico, que explora cenas de horror cotidianamente, fazendo que com que as injustiças diárias, de tão frequentes, se naturalizem. Trata-se de um grupo que parece ter sido tirado à força da pena do poeta, como se ele não ousasse calar perante fatos noticiosos já explorados pela mídia. Fiquei com a impressão de que Jeová forçou a mão também nos poemas mais explicitamente históricos, como “História do Brasil” I e II e “Canudos”. Da mesma forma, parecem descontextualizadas as referências a Van Gogh e à música clássica. Por outro lado, são muito pertinentes as referências ao cinema, “a máquina de deslumbramento”, como diz em “Retalhos”, à música popular e à fotografia, como no belo poema “Enquadramento”, dedicado ao fotógrafo Márcio Garcez, em que, através dos olhos do cantor Nino Karvan, o nosso querido Nininho, o poeta vislumbra a imagem do saudoso ator Mariano Antônio, do grupo Imbuaça, dançando sob a chuva no São João de Estância.


Contudo, o que me chamou mais atenção em Poemas Passageiros foi a historicidade da dicção poética de Jeová Santana, que se situa, sem dúvidas, nos anos oitenta. Jeová não passou incólume pela explosão do rock nacional, daí a influência das letras dos Titãs em poemas como “Rock do Palavrório”. Nessa seara, o poeta não tem medo das repetições nem das rimas fáceis, como se estivesse tomado por um espírito de cantador, ou se voltasse para as origens orais da poesia, que sempre tinha sido cantada e recitada, antes da invenção da imprensa. Da mesma forma, Jeová Santana não passou incólume pela literatura Beat. Lembro-me do seu deslumbramento com um poema de Ferlinghetti num dos festivais de arte de São Cristóvão, na época em que prestavam. Vi-o renascido no mais belo poema do livro, escolhido a dedo pelo autor para fechá-lo: “Com a Palavara, o Silêncio”. Com uma ambiência que parece vir direto da década de oitenta, o poeta retoma velhas imagens do Calçadão da João Pessoa, numa espécie de declaração de amor sentida e um pouco desesperançada: “porque na minha agenda / tá assim de gente / que nunca mais encontrarei / no Calçadão da João Pessoa”.


Com Poemas Passageiros, Jeová Santana apresenta uma poesia madura, experiente, erudita sem ser pedante, sofisticada sem ser metida, romântica sem soar piegas. Com serenidade, munido de sua mulatez risonha, o poeta, que já tinha pedido licença aos prosadores e contadores de história para tomar seu assento no panorama contemporâneo da narrativa de ficção, entra a passos comedidos, mas sem medo, na galeria dos poetas mais importantes de sua geração. Senti-me renovado com a leitura desse livro, e todos que ousam fazer essas viagens saem com a indelével impressão de que a poesia é sim necessária.



* Professor do Departamento de Letras Estrangeiras e dos programas de pós-graduação em Letras e Educação da Universidade Federal de Sergipe.



Atualizado em: Ter, 12 de março de 2013, 06:19
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