09/04
Quando não há vencedores: o Massacre do Carandiru e o modelo de polícia que queremos
Marcos Santana de Souza
Deixava de ser criança quando, em 02 de outubro de 1992, a cena de policiais da tropa de choque da Polícia Militar de São Paulo adentrando os portões do pavilhão 09 do complexo penitenciário do Carandiru para controlar a rebelião de um grupo de presos selaria, minutos depois, um dos episódios mais brutais de nossa história recente.
A intervenção policial que resultou em 111 presos mortos expôs para o mundo com bastante crueza, naquela ocasião, dois dos mais graves e ainda atuais problemas brasileiros: a falência do sistema prisional e o despreparo crônico das nossas instituições de segurança. Mais de duas décadas se passaram e as feridas se mantêm, ainda que algumas lições importantes tenham sido possíveis a partir daquela trágica experiência ocorrida poucos anos após o retorno à democracia.
Com gerações forjadas no silêncio compulsório dos “anos de chumbo”, o país precisou aprender com a opinião pública internacional a indignar-se diante de tragédias sociais como aquela. Foi e tem sido ainda difícil entre nós assumir uma postura indignada diante de uma polícia que mata antes mesmo que qualquer ideia mínima de proteção às pessoas seja de fato desenvolvida, sobretudo a depender do perfil da vítima, como revela a esclarecedora pesquisa coordenada pela socióloga da Universidade Federal de São Carlos, Jacqueline Sinhoretto, e divulgada nesta semana.
Episódios como os do Carandiru ou mais recentes como as de Amarildo de Souza e Claudia Silva Ferreira no Rio de Janeiro infelizmente estão longe de ser exceção, pelo contrário, amontoam-se em inquéritos falhos e processos, sob o despreparo, a burocracia e a leniência das autoridades. Sem a poderosa e necessária voz dos órgãos livres de imprensa e das redes sociais na internet, tragédias seguem anônimas, sem promessa de solução em nosso nebuloso horizonte.
Na raiz do problema, a perversa desigualdade, que não apenas exclui e renega a cidadania de muitos brasileiros, mas costuma conferir superpoderes a alguns poucos. Ninguém mais que o policial sabe disso, pois convive diretamente com esses problemas, seja no trabalho ou em suas folgas. Esses dias, lendo a monografia de um oficial da Polícia Militar de São Paulo, deparei-me com a frase: “O Sol nasce para todos, mas a sombra é privilégio de alguns!”. Tornada epígrafe do seu trabalho, a frase, de autoria de outro oficial da mesma corporação, não poderia ser mais esclarecedora sobre o caso brasileiro.
A impunidade está longe de ser uma realidade acessível a todos no país, ela se apresenta com maior vigor nos segmentos que curiosamente possuem maior acesso à Justiça e que conhecem as fragilidades de nosso sistema de justiça criminal. Digo isso, porque longe do que possa parecer, ela é bastante desejada, razão que nos amarra em projetos de reforma que nunca saem do papel. É, sobretudo, para quem pode pagar bons honorários advocatícios a garantia de infindáveis recursos que tanto dizemos odiar, ao mesmo tempo em que para parcelas expressivas da população, a exemplo de setores que sofrem mais de perto com a insegurança, a condenação de policiais envolvidos em crimes brutais seja, paradoxalmente, motivo de revolta.
Não são raros os comentários segundo os quais os policiais condenados deveriam na verdade ter sido “condecorados”, “promovidos” por “limpar” o que há de mais “indesejável”, “sujo” e “perigoso” em nossa realidade. Tais manifestações multiplicam-se nas redes sociais a cada nova exposição do caso. Sabemos que em muitos outros episódios, policiais o foram e por isso não é de estranhar que essa expectativa tenha se mantido viva como signo de “tempos respeitáveis” a influenciar discursos e ações no campo da segurança pública. As tentativas, felizmente fracassadas, de ressuscitar a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” no mês passado indicam isso.
Naquele momento do massacre, ouso dizer, ficamos chocados porque antes de nós o mundo nos cobrou uma sensibilidade que havíamos em grande parte “perdido” nas décadas de autoritarismo. Mas, será que já a tínhamos? Alguns perguntavam e ainda perguntam: “Por que devemos nos indignar?” Éramos (e sempre seremos) aprendizes nessa difícil seara da democracia e por isso tivemos que reconhecer, com muito custo, os erros de nosso tempo e a nos solidarizar com a dor dos outros, a tornar tangível a nossa endurecida carne os dramas alheios, mas, principalmente, a visualizar os perigos de conferir poderes quase que ilimitados a agentes em nome da chamada manutenção da ordem.
Os corpos amontoados sob um rio de sangue nos corredores e salas escuras do pavilhão 09 diziam muito sobre o Brasil do início dos anos 1990. O julgamento dos policiais, mais de vinte anos depois, diz muito sobre o país hoje, na sua dúvida existencial entre enfrentar o passado e recolher-se silencioso a partir de uma ideia de perdão que nunca nos perdoará, porque insiste nos corroendo através dos tempos, principalmente frente a novos detalhes trazidos à tona pela descrição fria ou arrogante de antigos torturadores, bem como do silêncio pactuado dos policiais acusados.
O último dos julgamentos dos policiais acusados de participar do Massacre do Carandiru em São Paulo chegou ao fim na última quarta-feira. Considerados culpados pela morte de 08 presos, os policiais militares receberam cada um a pena de 48 anos de prisão em regime fechado. Condenados em primeira instância, contudo, seguirão em liberdade até apreciação dos recursos que, como bem destacou o promotor responsável pelo caso em entrevista coletiva, podem se arrastar por anos sem resposta.
A condenação em primeira instância, embora tardia, é uma resposta em um país que se divide entre soluções democráticas e autoritárias. Os tentáculos do autoritarismo ainda se movem, mas outros braços se levantam, passam a repudiar o que é excessivo e que nos ameaça. Há uma guerra em nosso íntimo, sinal de que estamos em processo de crescimento, tropeçamos em nossas próprias pernas, talvez porque não tenhamos a real dimensão do nosso tamanho e de nossas possibilidades. Jovens, teimamos em argumentar que só nos importa o presente e o futuro. É essa disposição reiterada em não lembrar o que nos ameaça, principalmente quando nossos algozes, como disse o eminente historiador Daniel Aarão Reis, tiveram a oportunidade de sair pela porta da frente. Eles perversamente contaminaram não apenas o seu tempo, mas o das atuais gerações que são impelidas a conviver dentro e fora dos quartéis e unidades policiais com uma lembrança incômoda, com uma dívida que não fizeram, mas que é de todos nós.
É compreensível que os jovens militares e/ou policiais reclamem, saiam em defesa da profissão. No entanto, não se justifica a preocupação excessiva com a imagem corporativa, a dificuldade de assimilar críticas, de negar-se ao encontro com a alteridade. Justificar erros revela a inflexão de quem, viciado no espelho, investe de forma equivocada numa imagem distorcida de autoridade. É o que se vê na intransigência de alguns posicionamentos que fazem sucesso em alguns círculos nas instituições e sufocam as vozes de muitos policiais preocupados com a melhoria da profissão, com mudanças que possam de fato trazer reconhecimento e aumentar a confiança da população. Se mortes de criminosos assegurassem respeito aos policiais, as polícias brasileiras seriam uma das mais respeitadas do mundo. Pelo contrário, os índices de desconfiança da população estão em torno de 70%, conforme revelou o 7º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública lançado em 2013. Alguns dos principais motivos são bastante conhecidos: dificuldade das autoridades em identificar e punir desvios internos, de reformular protocolos informais de trabalho e por fim ao caráter altamente seletivo e violento das ações policiais. A dificuldade pode se resumir no difícil encontro com a nossa história, principalmente em perceber que o enfrentamento das fragilidades nos torna de fato fortes.
As manifestações de policiais através de associações antes e durante o julgamento não foram suficientes para impor um entendimento diverso para os jurados: sem reagir armados, como inversamente argumentava a defesa, o testemunho do perito e de sobreviventes, juntamente com outros elementos, indicava que as mortes foram resultantes de execuções feitas por policiais, em alguns casos, com dezenas de mortes em suas fichas funcionais.
Como nos outros julgamentos do mesmo caso, entendo que não há o que comemorar, apesar do fato histórico de um crime tão grave ter apresentado como primeiro desfecho a condenação de policiais, algo que dificilmente aconteceria duas décadas antes. Contudo, os núcleos que sustentam a cultura de violência nas instituições permaneceram preservados. Como infelizmente tem sido comum, as autoridades que permitiram ou até mesmo determinaram a barbárie continuam soltas e tantas outras ameaçam passar pela vida sem cumprir a condenação pelos seus crimes. Essa é uma das razões de grande incômodo, ou seja, ver quem deveria nos proteger apresentar-se como réu, ser o autor de crimes que deveria ter ajudado a evitar. Não há mais pura expressão do autoritarismo se não o momento em que as figuras do juiz, do policial e do carrasco fundem-se como “fácil” e “justa” resposta à insegurança e ao crime.
Ver policiais condenados não nos faz vencedores. Todos perdemos quando um policial trai a grandeza do propósito que o faz portador da missão de proteger, de prevenir ou solucionar crimes. A vitória só vem quando o crime que poderia acontecer não ocorre, quando a brutalidade deixa de ser regra e, principalmente, quando a autoria de um crime não tem as marcas de quem deveria evitá-lo. Qual será o desfecho final do caso, difícil saber. Até lá, que a sombra da memória incômoda do Massacre do Carandiru nos acompanhe, assim como dos horrores da nossa última experiência autoritária, e nos proteja de novos episódios, pois como lembra um dos belos textos do Prof. Paulo Sergio Pinheiro: “esquecer é começar a morrer”. Nesse tempo, é certo que ficaremos com o gosto amargo de quem não vê vencedores, mas que esperançoso acredita na emergência de novos caminhos.