Sex, 23 de setembro de 2011, 14:43

As profundezas da música de Edelson Pantera
As profundezas da música de Edelson Pantera

Luiz Eduardo Oliveira


15/01/2010


Foi com uma emoção muito especial que fui presenteado, no último dia do ano de 2009, pelas mãos do próprio artista, com o cd Belas Imagens, de Edelson Pantera. Decididamente, trata-se do maior acontecimento musical sergipano dos últimos tempos. Depois de cinco anos de espera, numa agonia para a qual serviram de arrimo tanto o consolo dos amigos quanto o escárnio de alguns colegas músicos do meio artístico sergipano, o primeiro disco desse que é o principal músico do estado finalmente saiu. O conhecido “Pantera” da noite sergipana, seu violão, suas piadas e suas impressionantes interpretações de canções dos mais vários gêneros e épocas, que já serviu de consolo para casais enamorados e homens e mulheres separados, além de objeto de deleite e até de certa exploração pelos boêmios, nas madrugadas aracajuanas, é tido como figura estranha e difícil para alguns. Os que o conhecem com mais intimidade sabem que ele é pura música. Naná Vasconcelos disse, no documentário A Pessoa é para o que Nasce, dirigido por Roberto Berliner, a respeito das três ceguinhas de Campina Grande, que elas eram “música em estado puro”. Caso ele tivesse conhecido a música de Pantera, diria que Pantera é música viva. Sempre com o violão em punho, compondo, fazendo versões engraçadas e exercitando o “dom de Deus”, como ele próprio diz na música de abertura do CD (Cantar é Dom de Deus, uma verdadeira oração cantada e tocada por Pantera, com ajuda dos teclados de Toninho Horta e Cláudio Faria, baixo de Iuri Popoff e as vozes de crianças do Coral Mater Ecclesie).



A música de Pantera é profunda e marcante, perpassada por referências várias, apreendidas pela incomum sensibilidade do artista, que se apropria da rica tradição do Clube da Esquina, de Gilberto Gil, Caetano Veloso, João Bosco, associada a incursões em territórios musicais estrangeiros, oscilando entre as trilhas sonoras clássicas de filmes antigos, o jazz e o rock, sem esquecer as referências musicais de Sergipe, como em Velhas Serenatas, composição de João Melo e Ismar Barreto. Levo em conta, claro, o fato de o disco ter sido produzido por Toninho Horta, que reconhece, no texto de abertura do encarte do CD, a genialidade do artista Edelson Pantera. Toninho Horta, na verdade, é o responsável por essa (re)descoberta de Pantera, quando, em 1999, veio a Aracaju a convite da Secretaria de Cultura para atuar na estréia da nova Orquestra Sinfônica de Sergipe. Impressionado com a qualidade de sua música, e com a canção que ele fez em sua homenagem (Toninho), decidiu produzir o seu primeiro disco, algo que a carência de incentivos culturais da cidade, associada ao descaso dos empresários locais, jamais teriam realizado. O tempo que Pantera já tinha na cena musical sergipana, assim como a quantidade de histórias no meio musical em torno de suas peripécias notívagas, já o estavam tornando uma figura folclórica da cidade, algo que trazia uma angústia profunda para um artista que, mesmo contra a vontade, muitas vezes gastava as noites de sexta e sábado satisfazendo as necessidades musicais dos freqüentadores de bares e pizzarias aracajuanas. Não que seja indigno o trabalho do “músico de barzinho”. Embora ingrato e pessimamente remunerado, os músicos, de maneira ritual, vivem prazerosamente esse ambiente pouco propício para intuições e criatividade artísticas. O próprio Pantera me confidenciou que gosta de tocar na noite, que é músico da noite. No entanto, sua rica música precisa de um espaço digno e mais propício. Não pode ser permeada por gargalhadas e gritos bêbados da madrugada. Ela é às vezes profundamente monacal e religiosa, como Oratório, ou festiva, como Maria Feliciana, duas parcerias do artista com o poeta Ronaldson Souza. Podem também ser dolorosa ou deliciosamente oníricas, como Matão, ou tranqüilas e serenas, como My Baby the Sun, em homenagem ao seu filho. Tais características e adjetivos usados para qualificar a sua música seriam os mesmos, caso eu apenas estivesse ouvindo Pantera e seu violão, em minha casa ou na praia, como já fizemos várias vezes. Isso significa dizer que, embora a apurada produção de Toninho Horta tenha dado uma qualidade ao disco que o tornam desde já incomparavelmente superior a tudo o que se produziu no estado em termos musicais, o que está a venda é a sua música viva, o ar respirado por Pantera, sua voz ao mesmo tempo suave e pujante, mesmo em músicas tristes e tocantes, como Chorando.

Quanto à sua poesia, caberia um texto a parte. Pantera não tem formação acadêmica. Nem musical nem literária. Talvez por isso, sua poesia, assim como a sua música, seja tão inusitada. As parcerias com o poeta Ronaldson Souza já denunciam o experimentalismo vocabular e sintático, visível nas rimas incomuns, oposições e aliterações a que é dado o artista, como mostram os versos seguintes: “Rosa vermelha alma/Calma carne cruz/Alma de Jesus” (Oratório) ou “Tão vistoso e secreto/Mito concreto e pessoa/O que desfaz o credo/Enigma em cada um” (Maria Feliciana). Mas é em suas próprias letras que tal capacidade de expressão poética atinge momentos surpreendentes, subvertendo normas gramaticais e alcançando, na melhor tradição da poesia moderna, resultados sofisticados, como em Matão: “Qual é o caminho certeiro/Que leva-me da onde eu vim”. Essa música, segundo relato do próprio autor, lhe surgiu em sonho, ocasião em lhe vieram nítidas as imagens de sua infância em São Paulo. Tive oportunidade de ir com ele no bairro em que nasceu, perto da Freguesia do Ó, e pude verificar, impressionado, que o que ele dizia na música era verdade, como já havia atestado sua própria mãe. Talvez por isso a letra, que alude aos personagens da rua e da cidade em que morava, antes de vir para Aracaju, aos cinco anos de idade (“Maurício, Silas, Sidney/Benilda, Márcia e Lídia/Mogi das Cruzes, santo André/Osasco, Vila Miriam”) construa uma atmosfera ao mesmo tempo celebrativa e onírica que, associada ao caráter não menos onírico e inusitado da música, tornam essa uma canção mágica, cujo poder de sedução pude atestar inúmeras vezes, na época da gravação do CD, quando eu me encontrava em São Paulo, fazendo doutorado, e Pantera passou um tempo em minha casa, retornando de Belo Horizonte. Igualmente tocante e assustadoramente mágica é Faial, fruto da viagem que Pantera fez a Portugal. Lembro-me da primeira vez que ouvi a canção, há muitos anos, e da impressão que me ficou do aspecto labiríntico de sua melodia, dos aclives e declives de sua harmonia quase hipnótica. A poesia de Faial anuncia uma narrativa secreta, que fica sugerida pelos versos sentimentais da primeira estrofe (“Oh Faial/Diz por que me prende/Por que me prende a ti Faial”) e assume dimensões épicas no final: “Eu vindo de algum lugar/Singrando o mar sem defesa/A nau vencida/A presa no olhar”, encerrando-se como um verdadeiro “encontro inesperado de amor”.

A empresa que patrocinou o cd, bem como os amigos que deram força para esse projeto, que durante um tempo foi considerado utópico e quixotesco por alguns, estão de parabéns. Estão de parabéns também a cidade de Aracaju e o estado e Sergipe, por ter Pantera em suas ruas e demais espaços públicos, os quais alimentam incessantemente sua imaginação criadora, sua música profunda e sua poesia inovadora. Como amigo e admirador da música de Pantera, trago comigo, desde a primeira audição desse cd, a melodia e a letra de Chorando, dedicada a sua esposa e a Mário Castelo, que se arraigaram nas profundezas de minha memória musical, como só as músicas profundas fazem. Assim atravessei o ano, vislumbrando um futuro auspicioso para a música produzida em Sergipe, mesmo que, para que ela se faça possível, outros Toninhos Hortas tenham que vir a Aracaju.


Currículo
Chefe do Departamento de Letras da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: luizeduardo@ufs.br.""


Atualizado em: Sex, 23 de setembro de 2011, 14:44
Notícias UFS