Ter, 27 de setembro de 2011, 12:57

A polêmica sobre o aborto e a relação entre política e religião
A polêmica sobre o aborto e a relação entre política e religião

Saulo Henrique Souza Silva


21/10/2010


Recentemente a polêmica sobre o aborto tomou conta do debate entre os dois candidatos que passaram ao segundo turno das eleições presidências no Brasil e chamou a atenção de todos que acompanham com algum interesse, por menor que seja, essa disputa eleitoral. Esse debate também chamou a minha atenção. Mas, não foram as questões éticas, biológicas e de saúde pública concernentes ao aborto, às quais os estudiosos ainda não chegaram a nenhuma conclusão, que despertaram meu interesse. Ao contrário, foi um problema pontual que eu pensava estar, senão resolvido, ao menos compreendido. Trata-se da relação entre política e religião. Quero refletir com o leitor razoável sobre esse ponto.



Quando se fala de política, no sentido preciso do termo, é correto estabelecer dois sentidos os quais não são excludentes, mas complementares. O primeiro sentido de política diz respeito a um modo de vida que é propriamente do homem, enquanto um ente que vive em sociedade com outros da sua espécie sob um poder instituído, uma legislação conhecida, uma forma de governo estabelecida. Viver em cidades é estar no âmago da prática política, ao menos para aqueles que são considerados cidadãos, enquanto espaço público de interação e cooperação. O contrário da vida política é a casa, ou o espaço doméstico (privado) o qual os gregos chamavam de oîkos para distingui-lo da pólis (o público). O segundo sentido versa sobre a ciência (epistéme) que se debruça sobre a política. O criador da filosofia política enquanto disciplina que tem por objeto específico a esfera pública foi o filósofo macedônico Aristóteles de Estagira. Assim, na Ética a Nicômacos, Aristóteles estabelece que investigar a finalidade da cidade e tudo que seja necessário ao bem comum “(...) é de certo modo o estudo da ciência política” (2001, p. 18).

Com o advento do cristianismo e o início da Idade Média um fenômeno duradouro ocorreu, a saber: a subordinação da política à religião. Este foi, de fato, um fenômeno importante porque no medievo a política esteve bastante anulada haja vista que as autoridades temporais estavam submetidas à autoridade espiritual da Igreja, representada pelo Papa. Além disso, a vida temporal (terrena) passou a ser entendia como corrompida pelo pecado original, tese amplamente desenvolvida por Santo Agostinho na obra a Cidade de Deus. Foi precisamente contra a intromissão do papado nos assuntos seculares, ou a pretensão da Igreja, segundo o filósofo britânico Quentin Skinner, na obra As fundações do pensamento político moderno, de “dominar o mundo partindo do princípio abstrato de que o divino é superior ao mundano” (1996, p. 316) que se ergueu toda a filosofia política moderna.

A marca da Modernidade consiste na secularização da esfera política, a qual passa a ser entendida com laica, leiga aos assuntos de natureza religiosa. Não é por acaso que Maquiavel, primeiro pensador a utilizar o termo Estado, debocha dos principados eclesiásticos no XI capítulo do Príncipe e reafirma, seguindo Marsílio de Pádua no século XIV, a soberania do Estado sobre os assuntos seculares. John Locke, filósofo bastante simpático à religião, defendeu a separação completa entre o Estado e a Igreja como forma de eliminar os conflitos e assegurar a estabilidade social, pois sempre que se permite a intromissão da religião na política corre-se o grande risco do conservadorismo e do autoritarismo estatal. A religião deve permanecer na vida privada, na consciência das pessoas e ao Estado pertence a soberania temporal. Ora, esse princípio da emancipação política que norteia o ocidente liberto das névoas do medievo, foi acatado pelo Brasil desde a Constituição de 1889 quando o Estado foi entendido como distinto da Igreja e a liberdade de culto religioso foi decretada. É de se admirar que mais de cem anos depois a religião exerça tanto poder e influencie de maneira decisiva a pauta política dos candidatos à presidência da República, a priori, “laica” brasileira.

Com efeito, o tema do aborto inserido dessa maneira simboliza a intromissão religiosa e a desonestidade interessada sobre um assunto complexo, visto que a discussão é proposta por instituições de cunho religioso e representa a opinião desses setores sem nenhuma discussão prévia; ou seja, é um dogma incontestável. Tanto José Serra, ao insistir nessa questão, quanto Dilma Rousseff, ao dar tanta atenção e justificar-se, acabam desviando-se do objetivo da política e embrenham-se no jogo da retórica ignóbil na qual o aborto é tratado como um mero artigo eleitoreiro. Dessa forma, a laicidade da República se desmorona ao permitir que a sua agenda seja determinada pela religião e a seriedade da discussão fica seriamente comprometida. Será que o período de caça às bruxas está voltando? Mas justamente em uma época que se pretende tão esclarecida!

[Artigo publicado no Jornal da Cidade no dia 20/10/2010]


Currículo
Doutorando em Filosofia pela UFBA, Professor titular da Cadeira de Filosofia do Colégio de Aplicação da UFS e pesquisador com diversos artigos e capítulos de livros publicados."


Atualizado em: Ter, 27 de setembro de 2011, 12:57
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