Sex, 18 de janeiro de 2019, 16:11

Dal Farra e Fernando Pessoa
Pontos de contato entre "Mensagem", do português Fernando Pessoa, e "Terceto para o fim dos tempos", da poeta Maria Lúcia Dal Farra.

Uma das formas de se fazer um livro de poesia é juntar todos os versos que se foi escrevendo ao longo da vida ou de um determinado período e organizá-los (por temas, data, ordem alfabética etc, ou mesmo só juntá-los) sob um título.

Não há demérito nisto, mas um risco para o qual autores, editores e leitores geralmente não estão atentos é o de que cada poema continue valendo, ali, pouco ou nada mais do que valia como página solta, e que, vistos em conjunto, nada tenham a acrescentar para além do que dizem isolados.

Há, por outro lado, livros nos quais se vê o contrário: um fio vai, como que pela mão de um bom costureiro, alinhavando cada ponta do tecido, fazendo com que possuam, no todo, uma forma e função que nenhuma parte teria se solta e sozinha.

Essa espécie de unidade não é meramente formal. Uma reunião dos sonetos ou quadras de um autor pode ter algo a dizer, mas as partes aí não necessariamente conversam entre si, contam uma história ou valem juntas como objeto intencional e independente de arte.

Também não se trata de uma unidade meramente temática. Não é porque falam de um só e repetido assunto que os poemas de um autor, postos juntos, dizem mais ou formam um todo.

Dois belos exemplos dessa unidade, digamos, “orgânica” — porque acima e além da temática e formal — são o livro Mensagem, do português Fernando Pessoa e o quase recente Terceto para o fim dos tempos (Iluminuras, 2017), da poeta e professora da UFS — sergipana de Botucatu (!) — Maria Lúcia Dal Farra. Elenco, brevemente, razões que os aproximam:

(1) Mensagem e Terceto são a recriação e interpretação de um passado (distante e recente) que desemboca naquilo que é atual e permanente à experiência humana. Em Pessoa, parte-se de fatos históricos comuns a um povo; em Dal Farra, de um permanente revirar de memórias íntimas, objetos e acontecimentos, em casa póstuma.

(2) Em Pessoa, reis e heróis nacionais, todos que, de alguma forma, entraram na história. Em Dal Farra, vê-se personagens de um cenário doméstico, especialmente a mãe, e os amigos ilustres que reencontra no parque de todo aquele que ama a literatura, os autores que visita como quem volta à biblioteca da formação do imaginário, a fim de pagar um divertido tributo.

(3) Incerteza, dor, dissabor, perpassam os finais dos dois livros (ambos os quais se dividem em três partes): no Portugal insípido, estacionário, sem “lei nem rei”, sem “paz nem guerra”; e, em Dal Farra, no circo de horrores: os dramas, novamente “pessoais” — mas nem por isso particulares — do corpo, da vida diária, e da luta com as palavras.

Paul Valery dizia que “os deuses nos dão o primeiro verso” — só o primeiro. Os outros, com os quais se pode dar corpo a um livro, não vêm de graça. Um livro que funcione como um todo e revele mais do que poderia dizer cada poema isolado também não é obra do acaso ou do Olimpo, mas do esforço intencional, calculado de um autor que tenha domínio de seu ofício. É o que se vê, cada qual a seu modo e com seus méritos, nestas duas obras.

Márcio Santana Sobrinho é jornalista.

(Artigo publicado no Jornal da Cidade)


Maria Lúcia Dal Farra (Foto: Márcio Santana/AscomUFS)
Maria Lúcia Dal Farra (Foto: Márcio Santana/AscomUFS)
Atualizado em: Sex, 18 de janeiro de 2019, 17:38
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