Ter, 10 de maio de 2022, 11:58

Projeto do Campus do Sertão orienta população sobre leishmaniose visceral canina
Em um ano e meio, 180 cães de Nossa Senhora da Glória (SE) foram testados para a doença transmitida pelo mosquito palha

"Eu ainda tomo remédio para conseguir dormir. De vez em quando, sonho com aquela cena de novo. Eles chegando sem nem cumprimentar, pegando Pipoca pelo pescoço e dizendo que ou era ela ou a gente. Ela viveu 17 anos aqui dentro de casa, não saía de perto da gente pra nada, nunca mordeu ninguém e, por causa dessa doença, tiraram ela amarrada daqui para nunca mais. Ninguém ficou doente. Naquela época, a gente tinha que entregar o cachorro com calazar a todo custo, não tinha choro nem grito nem vela, moça."

O depoimento de Dona Carmelita Aragão, 71, refere-se à apreensão, em 2001, de Pipoca, sua cadela SRD, feita pela tão temida e emblemática "Carrocinha", veículo utilizado pelos agentes dos Centros de Zoonoses dos municípios brasileiros no período de 1973 a 2008 para o recolhimento forçado de cães infectados por leishmaniose visceral canina (LVC) - doença popularmente conhecida como calazar - a fim de eutanasiá-los.

A prática, que suscita debates em países de todo o mundo, é terminantemente proibida na medicina humana brasileira - sendo, inclusive, considerada crime de homicídio -, mas totalmente legalizada na medicina veterinária, no que consiste em oferecer ao animal que está em sofrimento físico e/ou psíquico assistência para uma morte breve e indolor.


Por muitos anos, cães diagnosticados com Leishmaniose eram obrigatoriamente submetidos à eutanásia por agentes dos Centros de Zoonoses em todo o país (Foto: Pedro Ramos / Ascom UFS)
Por muitos anos, cães diagnosticados com Leishmaniose eram obrigatoriamente submetidos à eutanásia por agentes dos Centros de Zoonoses em todo o país (Foto: Pedro Ramos / Ascom UFS)

Dessa forma, por muitos anos, a eutanásia foi o único destino de cães, com sinais clínicos ou não, diagnosticados com LVC, uma vez que esses animais eram vistos como transmissores da doença para seres humanos, capazes de comprometer letalmente a saúde dos que conviviam ao seu redor.

"O cão nunca foi um vilão, uma vez que a doença é - e sempre foi - causada por um protozoário, o Leishmania infantum, transmitida pelo repasto sanguíneo (picada) das fêmeas do inseto vetor, o flebotomíneo, conhecido como mosquito palha", explica a professora do Departamento de Medicina Veterinária do Campus Sertão da UFS, Roseane Nunes.

Os sinais clínicos, como queda de pelo, perda de peso, crescimento incomum das unhas, problemas renais, dificuldades de locomoção e lesões em várias partes do corpo, dentre outros, também eram comuns a outras doenças e, por si só, não poderiam determinar a leishmaniose visc eral visceral em cães a olho nu. Assim, com o avanço dos estudos na área, a partir de 2016, o Ministério da Saúde adotou novas diretrizes em relação à LVC, sendo proibido o uso de carrocinhas e determinado que os responsáveis pelos animais passassem a ser informados sobre a possibilidade de tratamento em clínica veterinária particular, para além da eutanásia, caso quisessem.


"O cão nunca foi um vilão. Ele é um hospedeiro do protozoário leishmania, assim como o ser humano", explica a professora do Departamento de Medicina Veterinária do Campus do Sertão Roseane Nunes (Foto: Arquivo pessoal)
"O cão nunca foi um vilão. Ele é um hospedeiro do protozoário leishmania, assim como o ser humano", explica a professora do Departamento de Medicina Veterinária do Campus do Sertão Roseane Nunes (Foto: Arquivo pessoal)

No entanto, a desinformação sobre o tema ainda era frequente em municípios de todo o país, cabendo às secretarias municipais de saúde e médicos veterinários a disseminação de informações sobre a doença.

Pensando em tornar esse conhecimento uma realidade para a população do município sergipano de Nossa Senhora da Glória, distante 113 km de Aracaju e sede do campus Sertão da UFS, a professora Roseane Nunes implementou o projeto de extensão "O cão não é o vilão: vamos falar sobre leishmaniose?"

A ideia era de que crianças, jovens e adultos conhecessem um pouco mais sobre as formas de prevenção e transmissão da doença, que é endêmica em todo o estado. Dessa forma, o projeto foi levado à escolas e eventos populares da região.

"Diante do grande número de cães não domiciliados no município de Nossa Senhora da Glória e da falta de informação de boa parte da população, fazia-se necessário que as pessoas se conscientizassem dos mecanismos de prevenção e controle da doença, bem como de que o cão, se reagente, não a transmitiria através do contato direto para o ser humano, dando-lhe, assim, a possibilidade de tratar o animal com plena segurança. Então, resolvemos levar essas informações de forma que elas fizessem parte do cotidiano da população", explica a professora.

O projeto

Iniciado no fim de 2018 - e com uma pausa no período de pandemia da covid 19 - o projeto de extensão da UFS “O cão não é o vilão: vamos falar sobre leishmaniose?", realizado em conjunto com um projeto de iniciação científica, fez uma triagem de 100 cães da zona urbana e 80 da zona rural no município de Nossa Senhora da Glória, situado no Alto Sertão Sergipano, com testes rápidos para o diagnóstico da leishmaniose visceral em cães cedidos pela Fiocruz.

Dentre os animais não domiciliados da zona rural, houve 6 casos reagentes. Já dentre os domiciliados da zona urbana, 12 cães apresentaram-se reagentes para a LVC, sendo estes animais direcionados para um diagnóstico mais específico, em que o resultado seria confirmado e os direcionamentos aos tutores seriam repassados conforme as diretrizes vigentes do Ministério da Saúde.

"Em toda a triagem, era clara a falta de conhecimento dos tutores a respeito da doença, sintomas, controle, prevenção e até mesmo sobre a existência de tratamento para os cães. A prevenção da reprodução do mosquito palha, inseto que transmite a doença, consiste na vigilância de quintais com restos de entulhos, material orgânico, limpeza de galinheiros e, sobretudo, implementação de saneamento básico etc. É um trabalho de muitas mãos e, com informação, é possível contribuir para reverter as estatísticas", diz a professora.


Antes de integrar o projeto, Bárbara Regina Marques não tinha conhecimento aprofundado sobre a doença e alega que participação foi fundamental para o exercício da profissão (Foto: Arquivo pessoal)
Antes de integrar o projeto, Bárbara Regina Marques não tinha conhecimento aprofundado sobre a doença e alega que participação foi fundamental para o exercício da profissão (Foto: Arquivo pessoal)

Antes de fazer parte do projeto, a então estudante de Medicina Veterinária do campus Sertão Bárbara Regina Marques conhecia muito pouco sobre a doença.

"Eu sabia que se tratava de uma zoonose, já havia lido sobre o período de Carrocinhas, mas foi através do projeto e do contato com a população que entendi a importância da educação em saúde, do papel da medicina veterinária e do quanto a Leishmaniose é uma doença tropical altamente negligenciada pela população e pelo poder público. É transformador auxiliar as pessoas a buscarem ajuda para os seus cães, pois o indicativo de um animal reagente também nos traz respostas sobre o entorno em que essa pessoa vive", diz Bárbara, egressa do Campus do Sertão e, hoje, membro do Núcleo Ampliado Amparado de à Saúde da Família e Atenção Básica de Alagoas (NASF- AB).

Ela salienta ainda que o projeto mudou a forma com a qual ela olhava para a doença.

"O projeto me ajudou muito na forma de me comunicar com a população, trouxe um olhar diferente sobre o cão com leishmaniose ao expor o nosso papel de médico veterinário para a sociedade, para que o ambiente não seja um local de proliferação dos vetores e para as formas de cuidados com os animais, especialmente cães que sofrem tanto com a doença, não só em consequência dos sinais clínicos, muito severos, mas pelo trato social. Diariamente, cães são abandonados, espancados e mortos apenas por uma suspeita", finaliza.

Leishmaniose: o processo de contaminação

A professora Roseane Nunes explica que a leishmaniose visceral é uma doença infecciosa, mas não contagiosa. Assim, uma forma não infectante dos parasitas vive e se reproduz no interior das células do sistema de defesa do indivíduo, chamadas macrófagos.

"A forma infectante do protozoário, Leishmania sp., está no inseto, sendo o mosquito palha o mais conhecido na nossa região. Hematófago, a fêmea desse inseto, que também é chamada de flebótomo, se alimenta do sangue de alguns vertebrados, a exemplo dos cães e dos seres humanos, que, a partir de então, tornam-se hospedeiros da leishmania e, num período de incubação que pode variar de 2 meses a 2 anos, podem desenvolverm sinais clínicos característicos da doença que, se não tratados, podem levá-los à morte", explica a médica veterinária.

Ela conta ainda que esses insetos estão presentes e se reproduzem em locais úmidos, escuros, sujos, com muita folha caída no chão e com vasta matéria orgânica, medindo menos de 3mm e, portanto, atravessando facilmente telas de janelas e mosquiteiros.

"Os flebótomos estão além de qualquer barreira física. Telas não impedem que eles alcancem novos hospedeiros, sendo extremamente necessária a limpeza dos locais onde há sua maior incidência e a utilização constante de produtos repelentes, tanto em seres humanos como em cães", destaca Roseane.

A falta de conhecimento e a dor do diagnóstico

Egressa do curso de Direito da UFS, Tatiana Bittencourt, recebeu o diagnóstico de leishmaniose visceral canina de Lupita, sua cadela da raça Australian Cattle Dog há menos de seis meses, pouco depois de perder Belinha, da mesma raça, para a doença.

Em pouco mais de um ano, ela se utilizou de todos os recursos possíveis para salvar a cadela mais velha. Enfrentou idas e vindas de sintomas, crises e internamentos, por falta de informação e de orientações clínicas corretas quando a cadela ainda era filhote.


Egressa da UFS, Tatiana Bittencourt perdeu Belinha há quase um ano e, hoje, enfrenta o tratamento de Lupita (Foto: Arquivo pessoal)
Egressa da UFS, Tatiana Bittencourt perdeu Belinha há quase um ano e, hoje, enfrenta o tratamento de Lupita (Foto: Arquivo pessoal)

"Quando Belinha tinha cerca de um ano, começou a se falar sobre a vacina, mas o então médico veterinário dela era contra, alegando que o imunizante era caro, não prevenia a doença e que os efeitos colaterais eram severos, o que me deixou bastante assustada. Assim, não o questionei e não dei início ao protocolo de vacinação. Quatro anos depois, em 2020, ela apareceu com um corte numa das patas e achei que se tratava de um simples machucado, mas já era um sinal avançado da doença", conta Tatiana.

Mesmo com idas e vindas ao veterinário, o corte de Belinha não cicatrizava com facilidade e outros sintomas começaram a aparecer.

"Estava trabalhando e recebi uma ligação de que ela não estava conseguindo andar. Neste dia, eu me desesperei e a levei numa outra clínica, para avaliação de um outro profissional, que imediatamente solicitou o teste rápido. O resultado reagente para a doença foi desolador, mas a pronta informação do tratamento me fez ter uma mínima esperança", relata.

Durante o tratamento, Belinha teve melhoras significativas, mas, em agosto de 2021, foi contaminada por Babesiose e Erliquiose (conhecidas como doenças do carrapato) e a soma de infecções não a permitiram resistir. Hoje, Tatiana enfrenta novamente a doença com a sua cadela Lupita.

"Ela também não passou pelo protocolo de vacinação, mas descobrimos a doença em estágio inicial e o tratamento tem surtido efeitos muito positivos, uma outra realidade do quadro de Belinha", relata Tatiana.

Quem tem medo de vacina?

A falta de informação e de atualização de profissionais da área sobre a doença gera insegurança e temor em inúmeros tutores de cães nas regiões endêmicas do país, mas a professora Roseane Nunes explica que a vacina é protocolo necessário para modificar a resposta do sistema imunológico do cão frente ao protozoário.

"A LeishTec®, único medicamento autorizado no Brasil, não previne a contaminação do animal pela leishmania, uma vez que ela se dá através da picada do inseto, mas o objetivo do produto é mudar a resposta imunológica do cão, que quando comparados com humanos apresentam uma resposta imunológica ineficiente no controle da doença, por isso os cães adoecem mais. Assim, o uso da vacina na prevenção da leishmaniose visceral em cães tem resultados altamente satisfatórios", explica a coordenadora do projeto.

Segundo ela, a vacina é essencial para que o cão, mesmo em contato com o protozoário, desenvolva sinais clínicos da doença em menor quantidade.

"De forma muito didática, a LeishTec® transforma a resposta imune do cão quando faz ele produzir células de defesa, macrófagos mais eficazes contra o protozoário, e diminui a produção de anticorpos que não e a forma de defesa ideal para essa doença. Por isso, a própria vacina também é usada como protocolo de tratamento da doença, a fim de trazer uma melhor resposta diante dos sinais clínicos nos cães com LVC ", salienta Roseane.

Eutanásia não é mais uma premissa

Referência técnica na Vigilância e Controle de Leishmaniose, Malária e Febre Amarela da Secretaria de Estado da Saúde (SES), a médica veterinária Rita Castro explica que os cães reagente à leishmaniose no estado deve ser notificados, mas que a eutanásia não é mais uma premissa para controlar os casos.


Referência técnica na Vigilância e Controle de Leishmaniose da Secretaria de Estado da Saaúde (SES), Rita Castro enfatiza que casos devem ser monitorados, mas que eutanásia não é uma premissa,  e que tutores podem optar pelo tratamento (Foto: Arquivo pessoal)
Referência técnica na Vigilância e Controle de Leishmaniose da Secretaria de Estado da Saaúde (SES), Rita Castro enfatiza que casos devem ser monitorados, mas que eutanásia não é uma premissa, e que tutores podem optar pelo tratamento (Foto: Arquivo pessoal)

“A eutanásia dos cães com leishmaniose não é mais uma premissa para controle e prevenção da doença, mas ainda é uma recomendação do Ministério da Saúde para os que não serão tratados. O tratamento desses cães não é uma medida de saúde pública, é uma escolha individual dos tutores através dos serviços privados de saúde animal. A infecção nos cães e os casos humanos são indicadores de presença de flebótomos infectados no ambiente, por isso as medidas de prevenção e controle do vetor precisam ser realizadas de forma integrada com a população. As ações voltadas para educação permanente dos profissionais de saúde e educação em saúde para população são estratégias que precisam ser fortalecidas, se quisermos controlar a doença de forma eficiente”, diz Rita.

Ela explica ainda que as Secretarias Municipais de Saúde do estado estão em fase de estruturação para implementação do Programa de Vigilância e Controle da LV nos reservatórios, mas já realizam a vigilância dos casos humanos.

"O objetivo da Vigilância Epidemiológica é realizar o diagnóstico precoce e tratamento oportuno dos casos humanos de leishmaniose visceral. Tanto o diagnóstico como o tratamento para os casos humanos são gratuitos e estão disponíveis no SUS”, finaliza Rita.

Leishmaniose em números

Dados do Ministério da Saúde apontam que, de 2012 a 2017, foram notificados e confirmados no Nordeste 11.874 casos de leishmaniose visceral em humanos, com maior prevalência nos estados do Ceará, Piauí, Maranhão e Sergipe. Além disso, de 2016 a 2019, foram notificados e confirmados em Sergipe 268 casos de leishmaniose visceral em humanos, evidenciando a presença do inseto vetor na região e a consequente possibilidade de contaminação em cães.

Jéssica Vieira - Ascom UFS

comunica@academico.ufs.br


Atualizado em: Ter, 10 de maio de 2022, 14:54
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