Ter, 19 de abril de 2011, 04:02

Os silenciamentos da História
Os silenciamentos da História

Petrônio Domingues e Eloíza Mara Lima Poderoso


Quando falamos de escravidão, o que passa muitas vezes por nossa cabeça é a imagem de negros trabalhando na lavoura, fazendo o serviço braçal, morando em senzalas coletivas, de modo que é comum associarmos o termo escravidão ao meio rural. No entanto, a população escravizada não ficou restrita a esse tipo de ambiente; ela também ocupou as áreas urbanas, exercendo múltiplas e diversificadas atividades, como foi o caso dos “escravos de aluguel”, “escravos de ganho” e “escravos domésticos”. Aracaju não foi exceção à regra; a cidade abrigou essas e outras categorias de escravos que, durante muito tempo, foram “esquecidas” – para não dizer ocultadas – pela historiografia. Em vista de contribuir para por fim a essa obliteração, vale a pena consultar os processos criminais e civis do século XIX, a partir do acervo do Arquivo Geral do Judiciário do Estado de Sergipe (AGJES).

O acervo tem uma grande potencialidade de pesquisa. Para exemplificar, faremos alusão a um sumário de culpa e uma ação de liberdade e, ancorado nessas fontes, verificaremos alguns aspectos ligados à vida dos escravos que moraram em Aracaju, entre 1855 e 1888. O primeiro caso foi registrado num sumário de culpa (1). Propriedade de Lucio Caetano de Mello, o escravo Lino tinha uma amásia, Roberta, com quem morava no lugar denominado Quarteirão do Bugio. Determinado dia, quando chegava em casa por volta da hora do almoço, viu sua mulher com um sujeito que ele não gostava. Ficou com ciúmes e feriu-a com dois golpes de faca embaixo do braço; depois fugiu para o mato. Roberta sobreviveu, porém Lino não se dissuadiu do espírito vingativo. Outrora, enquanto sua mulher ausentou-se para buscar água na fonte, aproveitou para por fogo na casa. Por ser de palha, o imóvel foi em pouco tempo todo destruído. O processo não indica qual era a exata profissão de Lino (ele “prestava serviços para seu senhor”), entretanto, somos informados de que o escravo tinha amásia e casa, onde dormia e talvez viesse a fazer as refeições.

Também ficamos sabendo que o casal morava em casa de palha, num bairro onde predominavam negros, alforriados e pobres, já que as testemunhas são quase todas descritas assim.

Outro caso documentado foi do escravo João, de propriedade de Joaquim Carneiro Frião, residente na cidade de Aracaju (2). João tinha oitocentos mil réis para comprar sua carta de alforria, mas, como o seu dono não aceitou vendê-la, entrou com uma ação na justiça para conseguir sua liberdade, por intermédio de um procurador. Durante o andamento do processo, conseguiu provar (via um laudo médico) que tinha uma hérnia e, assim, tentou baixar o valor da sua carta de alforria. Os peritos definiram seu preço num valor de setecentos mil réis. Porém, o senhor do escravo contestou a decisão, alegando três coisas: primeiro, que o escravo tinha roubado quinhentos réis do seu antigo senhor, de modo que ele só estaria podendo comprar sua alforria porque se apropriou indevidamente do dinheiro; segundo, acusava o procurador de apresentar em juízo uma testemunha que não conhecia direito o escravo; por último, dizia que o escravo tinha costumes incompatíveis com as suas possibilidades financeiras: “possuía luxo” e tinha uma “amásia”.

Apesar de todas as acusações sofridas, o escravo João foi liberto, já que se encontrava amparado no artigo quarto da lei de 28 de setembro de 1871. Segundo a lei, o escravo que dispusesse de meios pecuniários para a indenização de seu valor, teria direito à alforria.

Nessa ação de liberdade podemos notar as dificuldades que os escravos enfrentavam para conseguir dar um basta ao jugo do cativeiro. Embora fosse identificado como “tanoeiro” e “alambiqueiro” – profissões especializadas para a época –, João foi acusado pelo seu dono de ter roubado o dinheiro para conseguir comprar a alforria. Por sua vez, essa ação de liberdade também evidencia como havia escravos que, a despeito de estarem nas camadas inferiores da sociedade, conseguiam fazer valer os seus direitos, recorrendo às barras dos tribunais.

Casos como o de Lino e João não devem ser vistos como estranhos à vida social de Aracaju oitocentista, afinal, foram justamente nos cenários urbanos onde os escravos tiveram uma maior autonomia. Na semana em que se comemora a transferência da Capital, lembremos dos homens e mulheres escravizados que contribuíram ativamente para a construção da riqueza material e cultural de Aracaju. Por meio de seu cotidiano de trabalho, de seus encontros e desencontros, suas venturas e desventuras, alegrias e tristezas, esses sujeitos – ainda que poucos visíveis na memória da cidade – não devem ser ignorados. Daí a importância de descortinar as histórias de Lino, João e de tantos outros homens e mulheres escravizados que, em solo aracajuano, derramaram sangue, suor e lágrimas para que as gerações vindouras tivessem a oportunidade de usufruir das benesses provenientes do progresso e da modernidade. Se Aracaju festeja o título de cidade com “melhor qualidade de vida do país”, parte dessa conquista deve ser creditada aos africanos e seus descendentes em diáspora.

(1) Sumário de culpa: a Justiça Pública contra o réu Lino (escravo), AGJES, fundo: Aracaju – 1ª. vara criminal, série: Penal, subsérie: Sumário de culpa, caixa 2637.

(2) Ação de liberdade de João. AGJES, fundo: Aracaju, Cartório 2º. Ofício, série: diversificada, subsérie: escravos, caixa 01/2280.


Currículo
Petrônio Domingues (Doutor em História – USP - e Professor do Departamento de História - UFS) e Eloíza Mara Lima Poderoso (Licenciada em História pela UFS).


Atualizado em: Ter, 19 de abril de 2011, 04:06
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