Magson Melo Santos
21/10/2009
No Brasil contemporâneo o debate público sobre a questão das ações afirmativas assumiu grandes proporções. De um lado, defensores da vertente inclusivista viam como fundamento para a adoção de tais políticas um passado marcado pela chaga da escravidão e um presente de grandes injustiças sociais para com os afro-descendentes, de outro, segmentos organizados afirmavam que tais políticas feririam o principio Constitucional da igualdade e que não haveria como distinguir “por cores” em um país tão miscigenado como o nosso.
Por quase quatro séculos, vigeu em nosso país o sistema escravocrata mais duradouro das Américas, e o Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravidão. Quando da transição do trabalho escravo para o trabalho livre, que se iniciou na segunda metade do século XIX, com fundamentação de ordem racista, o Brasil optou por importar mão de obra estrangeira a incorporar no sistema produtivo os negros libertos do flagelo da escravidão.
Ao longo do século XX, disseminou-se o mito da democracia racial, o qual afirmava que as relações próximas entre brancos e negros, ou melhor, entre a Casa Grande e Senzala teriam gerado um sentimento de cordialidade e de convivência pacifica entre esses grupamentos ao longo dos séculos, sem ódios étnicos, e o mestiço tipicamente brasileiro, fruto das relações carnais entre brancos e negras seria a síntese desse Brasil sem preconceitos.
Apesar de toda a alegoria criada por Gilberto Freire, na prática o que se verificou foi o desprezo e o desprestigio para com os descendentes dos escravos, a sociedade brasileira sintetizou e aplicou formas “disfarçadas” de preconceitos, sob a forma de barreiras culturais e sócio-econômicas que levaram os afro-brasileiros a ocuparem os piores postos de trabalho, a compor o maior percentual dos pobres do país
As ações afirmativas são um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como educação e o emprego. No Brasil elas são medidas necessárias para a inclusão social de segmentos que historicamente ocuparam posições de subalternidade, como os pretos, os pardos e os indígenas.
A Constituição em várias passagens preocupa-se com a construção de uma sociedade justa e solidária (art. 3º, I); com a erradicação da pobreza e da marginalização (3º, III), com a redução das desigualdades sociais e regionais (art.170, VII); com a promoção do bem de todos, sem preconceitos (3º, IV); com a oferta dos direitos sociais da educação, saúde, trabalho, lazer, assistência aos desamparados; visando assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170).
O legislador originário constitucionalizou várias políticas afirmativas como a que garante proteção do mercado de trabalho da mulher, com medidas e incentivos específicos nos termos da lei (art. 6º, XX, CF), e também a que reservou percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência (art. 37, VIII, CF). Além disso, o Brasil desde 1968 é signatário da Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a qual afirma em seu art. 1º, IV: que não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos que necessitem de proteção para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais.
Na III Conferência das Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas; a proposta da delegação brasileira foi de promover postos de trabalho e reservar vagas nas universidades públicas para afro-descendentes. Desde então, mais de 55 Universidades Públicas, inclusive a UFS, adotaram alguma forma de reserva de vagas baseada em critérios sócio-econômicos ou
de recorte étnico, tendo como fundamentos o princípio da autonomia universitária e a inclusão social de grupamentos excluídos do acesso ao ensino superior.
O principio da igualdade comporta duas acepções: a da igualdade formal, de caráter estático, que parte do pressuposto de que todos dever ser tratados de igual forma pela lei; e a da igualdade material ou substancial, dinâmica, que parte da premissa de que somos diferentes, e, por isso, em situações diferentes devemos ser tratados de maneira dessemelhante, evitando assim a perpetuação das desigualdades socialmente gestadas e reproduzidas.
As políticas afirmativas são Constitucionais não somente porque estão presentes na Carta Magna de 1988, mas porque objetivam diminuir as desigualdades existentes em nossa sociedade, sejam elas de ordem social, econômica ou étnica. E por isso, as ações afirmativas que em essência são inclusivas, se revestem da mais nobre acepção de Justiça e de legitimidade democrática. Portanto, o Brasil multicultural antes de se projetar para o futuro, terá que resolver suas questões do passado.
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