Ter, 27 de setembro de 2011, 13:11

A cólera do cólera
A cólera do cólera

Luciane Pimenta Cruz Romão


13/12/2010


As mais de 2000 mortes de seres humanos no Haiti, por conta da epidemia do cólera, nos trazem reminiscências da obra “o amor nos tempos do cólera”, de Gabriel Garcia Marques.



O poético realismo regional do escritor colombiano, expresso anteriormente na narrativa das gerações da família da pequena Macondo, consegue de tal modo, magistralmente, associar o amor doentio de Florentino por Fermina às dores e perdas causadas pelo cólera, mesma doença que hoje, passados dois séculos, continua a ceifar vidas de modo tão grotesco.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o cólera é uma infecção aguda, causada pela ingestão de alimentos ou água contaminada com a bactéria Vibrio cholerae, caracterizando-se por forte diarréia, vômito e cãimbras nas pernas. As pessoas acometidas dessa doença, comumente, têm perda rápida de fluidos, o que lhes ocasiona intensa desidratação. Sem tratamento, pode-se morrer em poucas horas. A cada ano são estimados 3-5 milhões de casos de pessoas com cólera; dentre esses, 100.000 a 120.000 vão a óbito.
Desde tempos imemoriais, estudos preconizam cuidados com a potabilidade da água. Os gregos recomendavam sua exposição à luz solar e fervura. Os Egípcios utilizavam o uso de sal de alumínio, em 1500 a.C., para clarificar e aumentar as qualidades sépticas da água.

Durante o séc. 18, a filtração se convencionou como meio efetivo na remoção de partículas em suspensão na água. Na última quadra do séc. 19, cientistas conseguiram identificar as fontes e os efeitos dos contaminantes na água de beber, especialmente aqueles que não eram visíveis a olho nu.

Em 1855, o epidemiologista Dr. John Snow provou que o surto de cólera que acometia Londres viria das fontes públicas contaminadas com esgoto (EPA, 2000).

Em 1908, o cloro foi utilizado como desinfetante pela primeira vez, em New Jersey, nos Estados Unidos; desde então, tem sido amplamente usado nas estações de tratamento de água. Seu uso foi um importante passo para redução da mortalidade humana causada por doenças disseminadas pelos sistemas hídricos.

O cólera é doença diretamente ligada ao manejo ambiental inadequado, pela ancestralidade e precariedade das condições de infra-estruturas básicas e requisitos mínimos de higienização. Continua ela a ser uma ameaça global à saúde pública e um indicador importante da falta de desenvolvimento social de nações e de povos.
Como aceitar que, em meio a tanto conhecimento e tecnologia, ocorram milhares de mortes por problemas que possuem solução há séculos conhecida. Essa é mais uma grande e flagrante contradição da pós-modernidade.

No mesmo instante em que países como Haiti sequer conseguem fazer o tratamento básico das suas fontes hídricas, cientistas dos países centrais voltam suas preocupações para o destino e a ecotoxicologia da nova categoria de poluentes, os chamados emergentes.

É atualmente por demais conhecido da comunidade científica que o tratamento convencional da água e dos esgotos não remove do meio aquático esses “novos” poluentes.

Na categoria de poluentes emergentes estão: hormônios e esteróides, produtos farmacêuticos, agentes de contrastes, drogas de abuso, produtos de uso pessoais, surfactantes, retardantes de chama, aditivos industriais, produtos de desinfecção (La Farré et al., 2008).

Fala-se de morte por cólera hoje, mas amanhã, por certo, poderão ser outros vetores patogênicos, como enterovírus, cistos de Giardia spp, oocistos de Cryptosporidium SP.

Quando os ambientalistas falam da necessidade de preservação e saúde dos corpos aquáticos, evidencia-se, pois, a compreensão de que os aspectos ambientais dialogam simbólica e objetivamente com os elementos sociais e de saúde pública.

A convivência no séc. 21, com populações habitando em condições miseráveis, sem água potável e sem saneamento básico, nos lembra o poeta Ferreira Gullar: “que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor, apenas respeitadas, como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos”.


Currículo
Professora do Departamento de Química e Coordenadora do Núcleo de Pós-Graduação e em Química (NPGQ)/UFS.


Atualizado em: Ter, 27 de setembro de 2011, 13:11
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