Qui, 16 de março de 2017, 15:36

Cresce tensão fundiária na região do Baixo São Francisco em Sergipe
Por Michele Amorim Becker e Evaldo Becker*

As belas paisagens que compõem a foz do rio São Francisco voltam a ser cenário de ameaça e de violência por parte de fazendeiros sobre comunidades ribeirinhas. Apesar da região ser palco de litígios que correm na justiça desde 2011, e cujo processo encontra-se em tramitação na 9º Vara da Justiça Federal, em Propriá, a comunidade ribeirinha do Saramém, localizada no município de Brejo Grande, sente-se desprotegida pois, desde a semana passada, vem sofrendo ameaças de destruição de suas casas de taipa.

Segundo relatos de moradores do povoado, em sua maioria pescadores artesanais que retiram seu sustento do rio São Francisco, representantes dos fazendeiros percorreram o local pedindo os nomes dos proprietários das casas e avisando que nesta sexta-feira (17) as máquinas (tratores) chegariam para efetuar a demolição das casas e dos cercados. Tais ameaças - que incluem a expulsão de homens, mulheres e crianças - vêm sendo feitas à revelia da lei e da justiça. O uso do constrangimento e da força vem pautando as relações entre fazendeiros e ribeirinhos, acirrando os ânimos e gerando apreensão por parte da comunidade.

Cabe ressaltar que o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que visa proteger as comunidades indígenas e tradicionais, bem como, o meio ambiente em que vivem. Apesar da legislação brasileira protege-los formalmente, na prática, seus membros, assim como seus territórios, vem sofrendo ataques.

De acordo com Acselrad (2013), pesquisas na área de mapeamento participativo, demonstram que, no Brasil, dos 284 casos de experiências denominadas por seus promotores de cartografia social, entre os anos de 1992 a 2012, a maior parte diz respeito a luta por reconhecimento territorial (42%) e a projetos etno-ecológicos ou de manejo ambiental (38%). Os grupos identitários que protagonizam tais experiências são em sua maioria étnicos (44%) e extrativistas (20%). Já as áreas que são objeto do mapeamento, do ponto de vista de sua condição jurídica são, principalmente, terras indígenas (33%) e terras tradicionalmente ocupadas (27%). No caso específico da região do Baixo São Francisco, todos os itens acima mencionados são identificados, pois “[...] para os povos e comunidades tradicionais, os territórios, os recursos que eles contêm e os conhecimentos que a eles se referem constituíram-se historicamente como objeto de disputa frente às forças do mercado de terras, do agronegócio, da mineração ou dos grandes projetos de desenvolvimento” (ACSELRAD, 2013, p.6).

Nas vésperas da semana da água, enquanto o sertanejo paraibano comemora a chegada das águas do Velho Chico através dos canais da transposição, os conflitos fundiários em Sergipe turvam as ideias de justiça e paz. Considerado o maior Patrimônio Natural do Estado, o rio e as comunidades que habitam o seu entorno continuam sendo alvo das investidas do setor do agronegócio, aliado ao setor imobiliário, que visam expulsar os ribeirinhos para a instalação de resorts que concentrarão ainda mais renda nas mãos de poucos, às expensas do bem-estar e das condições mínimas de sobrevivência de muitos.

Importante enfatizar que essa história já tem longa data. Começou em meados de 2006, quando o dono de uma empresa do setor da construção civil de Sergipe pousou seu helicóptero na Comunidade Quilombola da Resina (vizinha do Povoado Saramém) dizendo que era dono de todas aquelas terras e que não queria saber de pescador por lá, pois naquele local seria construído um complexo hoteleiro de alto nível. Muita luta foi travada entre o movimento quilombola e os fazendeiros da região para garantir o direito de uso daquelas terras pertencentes a Marinha e a União. Muitas famílias forma persuadidas a saírem da Resina por medo de perderem suas vidas. Mais de dez anos se passaram e as histórias de terror não caem no esquecimento, ao contrário, ressurgem como fantasmas na vida dessas pessoas de origem humilde. Não obstante, a falta de acesso à informação e a dificuldade de se comunicarem com o restante da sociedade faz com que essas pessoas se sintam cada vez mais isoladas e fragilizadas pelas tensões fundiárias.

Ainda segundo moradores do Saramém e da Resina, nas últimas semanas tem sido grande a movimentação por parte dos fazendeiros para cercar enormes porções de terra que estão dentro do território quilombola e para desmatar grandes áreas de mangue às margens do São Francisco, para a construção de viveiros de camarão. A carcinicultura, como é de conhecimento geral, é uma atividade de alto impacto ambiental, sobretudo quando praticada no delta dos rios, considerado berçário de inúmeras espécies da fauna e flora locais.

Pesquisas na área socioambiental demonstram que a manutenção das comunidades tradicionais em seus territórios ancestrais, com a devida assistência técnica do Estado, auxilia no acesso à justiça social e na conservação do meio ambiente, ao passo que a exploração predatória do agronegócio vem destruindo nosso patrimônio natural. Tal luta não interessa apenas aos habitantes das margens do rio. É sempre bom lembrar que 70 % da água que abastece Aracaju vem do rio São Francisco. O que seria cômico se não fosse trágico, é que enquanto os cidadãos de Aracaju bebem água tratada proveniente do São Francisco, inúmeras comunidades ribeirinhas continuam tendo como oferta às suas crianças e adultos, apenas água salobra e poluída.

Não bastasse o esgoto de vários municípios que é derramado sem tratamento no rio, e do excessivo uso de agrotóxicos nos arrozais que é despejado nas águas do Velho Chico, neste momento, em função do crescimento da carcinicultura em áreas protegidas, amplia-se ainda mais o despejo indiscriminado de veneno no solo e nas águas da região. Enquanto isso, apesar da decisão judicial, expedida pela 9º Vara da Justiça Federal, em Propriá, sob o número 0800276-59.2016.4.05.8504, determinando que a DESO fornecesse água tratada em vasilhames próprios para as comunidades em questão, os pescadores do Porto do Saramém e os quilombolas da Resina só têm, até o momento, o acesso à água colhida diretamente no rio ou em poços com água salobra. Eis um breve retrato das injustiças socioambientais que assolam nosso estado e, em especial, as comunidades pobres que o habitam.

*Michele Amorim Becker é professora de Jornalismo do Departamento de Comunicação Social (DCOS/UFS) e Evaldo Becker é professor do Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema/UFS) e do Mestrado em Filosofia (PPGF/UFS). Ambos desenvolvem pesquisa sobre Comunicação de Riscos Socioambientais no Baixo São Francisco em Sergipe.


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