Ter, 20 de março de 2018, 09:32

O assassinato de Marielle Franco e o fim da política
Saulo Henrique S. Silva*
Professor Saulo Henrique S. Silva. (Foto: arquivo pessoal)
Professor Saulo Henrique S. Silva. (Foto: arquivo pessoal)

Nas democracias representativas, a pessoa que possui o mandato de representante deve encarnar a voz de uma determinada fração da coletividade, ser a porta-voz dos anseios e das pautas dos grupos sociais pelos quais foi eleita. Sobre isso, o assassinato de uma representante como Marielle Franco (a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro), que advogava em favor do povo excluído, maltratado e assassinado das favelas cariocas, jamais será um crime qualquer, um caso individual, mais um número para a estatística de mortes violentas. Ao contrário, é um crime político que visa calar a voz de milhares de pessoas, corresponde à abdicação da política pelo recurso à violência e ao extermínio. Quem defende esse tipo de atitude torna-se automaticamente cúmplice e assume uma posição contrária aos direitos humanos naturais e à cidadania positivada pela Constituição brasileira de 1988.

Além de uma questão de fundo legal, esse caso nos traz diversos problemas de filosofia política e psicologia social. Afinal, como compreender a psicologia inerente aos grupos defensores do autoritarismo, da violência, do recurso à força e ao extermínio do contraditório? Eric Fromm identificou, em seu clássico de psicologia social intitulado Fear of freedom (1941), essa característica como fruto da psicologia masoquista, berço de todo autoritarismo. Segundo Fromm, “a impotência do homem é o estribilho da filosofia masoquista” a qual corresponde à negação da individualidade em prol da ordem sádica de um senhor malvadão; por isso, “na filosofia autoritária não existe o conceito de igualdade”, e sim de superioridade e submissão. Porém, os defensores do autoritarismo contra as liberdades, estejam eles nas redes sociais ou nos gabinetes das "autoridades", não devem ser tratados com simples ridículos incapazes de compreender adequadamente os assuntos políticos. Essas pessoas devem ser identificadas, devidamente processadas e punidas por seus atos de agressão contra a democracia, contra os direitos humanos, políticos e sociais. Com esse tipo de gente não existe a possibilidade de travar um diálogo, e sem diálogo não há democracia, muito menos política, portanto, são indivíduos incompatíveis com a vida civil.

Tais indivíduos não estão aptos para viver em sociedade política porque não respeitam a cidadania e os procedimentos democráticos. Dessa forma, as questões que se impõem são as seguintes: é possível que a negação da política seja aceita dentro dos contornos legais dos estados democráticos? Em outras palavras, indivíduos e grupos sociais defensores de procedimentos autoritários e contrários aos princípios políticos constitucionais básicos como liberdade e cidadania podem participar da vida política que eles mesmos querem destruir? Devemos alimentar o câncer que visa solapar as estruturas do nosso corpo? Essas questões são importantes porque estabelecem o limite do aceitável e desvela o que deve ser repudiado. Afinal, não é possível viver em estado de cooperação com pessoas que só compreendem que a ordem advém da palmatória, que a pobreza é um crime, que o diferente deve ser enquadrado sem ter chance de defender as suas ideias. E para as renitentes como Marielle ainda existem: o elogio à tortura e o recurso ao assassinato.

Evidentemente, a categoria da representação política que ganhou força com o renascimento dos valores democráticos, ainda na primeira metade da modernidade europeia, não é um expediente que permite a igualdade política universal. Ao contrário, a representação foi justamente uma maneira de afastar a coletividade das decisões, franqueando as mesmas a um número diminuto de cidadãos, deputados, tribunos ou representantes. Em todo caso, em uma Europa varrida pelas desgraças do absolutismo de reis pouco afeitos à administração pública, a representação ao menos era uma forma de permitir que grupos sociais excluídos do poder tivessem voz nos limitados parlamentos de então. Por isso, os representantes políticos, por mais restrito que seja o fundamento da representação, foi uma conquista popular e fruto de muitas lutas. Como já diria Maquiavel a respeito da república romana, em Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, “só depois dos distúrbios, das contínuas reclamações e dos perigos provocados pelos longos debates entre nobres e plebeus é que se instituíram os tribunos da plebe, para a segurança do povo”.

Ora, em regimes políticos onde a representação pode ser aniquilada por uma série de razões aquém da política, inclusive pelo temor da liberdade, os contornos legais da democracia ficam comprometidos. Pois, se é no nível da representação que as pautas gerais do povo ganham voz nos parlamentos dos estados democráticos, obviamente, o tribuno deve encarnar essa fração da personalidade coletiva e ecoar essa voz dentro do parlamento. O assassinato dessas lideranças populares é equivalente à morte desses seguimentos sociais enquanto categoria política, porque a violência elimina o direito constitucional deles serem representados. E onde a cidadania e os direitos não possuem tratamento universal, mesmo sendo garantidos pela lei, é possível se afirmar que acabou a política; estamos a um passo da usurpação autoritária e da guerra civil.

Com efeito, a representação é a exigência mínima para a existência civil democrática, para a garantia das liberdades e da possibilidade de ecoar no parlamento a voz sufocada das ruas pelos aparelhos de coerção social e em favor da manutenção do status quo da dominação e da desigualdade. Afinal, a quem interessa o autoritarismo, a retiradas de direitos, o cerceamento da liberdade e o assassinato dos porta-vozes do povo? Além disso, a quem interessa tamanho nível de agressão contra uma pessoa que já havia sido morta de forma tão brutal? Evidentemente, estamos vivendo em um período de degradação das instituições populares através do qual o autoritarismo, enquanto antítese da liberdade, se instaura. Por sua característica de antítese, é um movimento de negação da democracia e da possibilidade de ascensão das classes tradicionalmente oprimidas da sociedade brasileira à situação de protagonismo político. Eis o nosso momento, eis o inimigo que deve ser combatido pelo conjunto da sociedade comprometido com o aprofundamento dos valores democráticos.

*Professor do Colégio de Aplicação e dos programas de Pós-Graduação em Filosofia e Pós-Graduação em Rede Nacional Para o Ensino das Ciências Ambientais.


Atualizado em: Ter, 20 de março de 2018, 10:00
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