Ter, 13 de abril de 2021, 14:37

Ensino remoto emergencial: da internet na escola à escola na internet
Henrique Nou Schneider

Em dezembro de 2019, em Wuhan (cidade chinesa) foi detectado um surto de pneumonia viral que logo se alastrou pelo planeta, levando a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar estado de pandemia pelo Coronavirus 2019 – COVID 19 - em março de 2020.

Do isolamento social radical – lockdown – às flexbilizações progressivas instituídas pelos governos federal, estaduais e municipais, o fato é que a humanidade foi pega de surpresa por esse fenômeno da contingência, alterando radicalmente o nosso modo de viver. Os efeitos da pandemia afetaram e continua afetando todas as atividades humanas, nos levando ao desenvolvimento de um segundo ano acadêmico atípico, desde a suspensão das aulas presenciais ao posterior retorno das atividades escolares nos três níveis – fundamental, médio e superior – no inusitado regime de “ensino remoto emergencial”, ao qual acrescento o termo “precário”, pelas razões que analisarei ao longo deste texto.

Ensino remoto improvisado não é ensino online! A Educação a Distância (EaD) existe a muito tempo e vem sendo atualizada conforme as tecnologias de informação e de comunicação se desenvolveram. A EaD possui pedagogias e didáticas próprias, as quais almejam, utilizando as tecnologias disponíveis à época, reduzir os efeitos colaterais provocados no processo de ensino-aprendizagem pela falta da sala de aula presencial, na qual o professor e os seus alunos interagem face-a-face.

Mudança do ethos no ensino presencial para o do ensino a distância

A legislação educacional brasileira prevê três modos de desenvolver o ensino de graduação: presencial, semi-presencial e a distância. Os cursos de graduação presenciais podem ser semi-presenciais contendo até 40% da sua carga horária desenvolvida a distância (exceto Medicina), de acordo com a Portaria 2.117 de 6 de dezembro de 2019. Os cursos a distância, no âmbito da educação federal, são desenvolvidos nos padrões estabelecidos pela Universidade Aberta do Brasil (UAB), os quais preveem encontros presenciais nos polos ligados às IES para aplicação das avaliações e possíveis discussões sobre os conteúdos das disciplinas sob a coordenação dos tutores. A comunicação síncrona e assíncrona entre alunos e tutores é estabelecida por meio de um Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). No modelo adotado pela UAB, o aluno interage com o tutor e não com o professor, que é quem, de fato, desenha os cursos (esta dicotomia entre professor e tutor provoca críticas severas, devido os tutores, na prática, desempenharem o papel de professor nos encontros – remotos e presenciais – com os alunos).

Um AVA deve prover os serviços de comunicação síncrona (chat, vídeo-conferência) e assíncrona (e-mail, fórum de discussão, questionário e formulário); colaboração, visando a construção coletiva de conhecimento entre alunos e destes com o tutor; e coordenação, a fim de possibilitar ao tutor e ao professor a administração do desenvolvimento das atividades pedagógicas. É fundamental que as suas interfaces tenham qualidade de usabilidade, além de serem acessíveis a alunos que apresentem deficiências.

Por qualidade de usabilidade entende-se a capacidade dos sistemas informáticos oferecerem a seus usuários, na interação com os mesmos, eficácia, eficiência e satisfação no uso. Acrescenta-se, ainda, outros princípios de usabilidade das interfaces humano-computador tais como a fácil aprendizagem de uso do sistema, segurança, utilidade e recordação. Já a acessibilidade se refere à capacidade dos sistemas informáticos poderem ser usados por pessoas que apresentem alguma limitação física ou alguma incapacidade, como cegueira, surdez, mobilidade de membros superiores e etc.

Se o desenho pedagógico do curso for adequado e a tecnologia digital apresentar a eficácia e a eficiência requeridas, está na atitude do aluno o terceiro requisito para o sucesso. Ele deve estar apto a exercer a autonomia da aprendizagem – característica primordial nesse desenho de EaD, o que lhe possibilitará desenvolver os conteúdos seguindo as instruções pré-estabelecidas. Aliada à capacidade de autoaprendizagem, tem-se na disciplina do aluno uma condição essencial, pois a flexibilidade do sistema cobra esta responsabilidade dele, pois existem os prazos a cumprir.

A EaD convencional (e-learning) distingue-se do ensino online ou ensino ubíquo (m-learning) pela possibilidade da mobilidade no uso. Então estamos falando da construção coletiva de conhecimento “any time, any where”, quando os aprendizes aprendem interativamente na dialógica com os seus colegas e professores, independentemente do espaço e do tempo. A computação ubíqua e pervasiva em nuvem torna transparente para o usuário a tecnologia. O seu dispositivo encontra uma rede disponível autonomamente. Assim, a computação ubíqua gera vários computadores para a mesma pessoa, estabelecendo uma relação de facilidade na realização de diversas tarefas.

A pandemia forçou a escola migrar para a internet. Nem mesmo se usufruiu da potencialidade das TDIC nas aulas presenciais com a disponibilidade da internet para a sua utilização na sala de aula e nas atividades extra-classe, a comunidade escolar, do ensino fundamental à pós-graduação, viu-se forçada a desenvolver o processo de ensino-aprendizagem no ciberespaço e trancafiada em casa!

Se a educação brasileira já apresentava a ineficácia comprovada pelo desempenho dos seus alunos nas avaliações internacionais - Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), agora acrescentou-se mais uma dificuldade: ensinar e aprender diante da tela de um computador (desktop, tablet, smartphone) sem o professor e o aluno estarem presentes fisicamente. Convém salientar que a OMS recomenda limites para a interação por meio de interfaces humano-computador pelas crianças e adolescentes, a fim de que não se desenvolva a síndrome da visão digital, como o cansaço visual, irritação e vermelhidão ocular, dores de cabeça, olho seco, visão embaçada e visão dupla : até os 2 anos de idade não se deve expor crianças diante das telas digitais; de 2 a 5 anos somente permitir o contato com os dispositivos digitais até 1 hora por dia; e, a partir dos 6 anos ,o limite é de apenas 2 horas diárias.

Desconsiderando o conhecimento científico, na emergência da contingência, o que se fez no âmbito do ensino presencial: tentou-se replicar o modelo conhecido, porém comprovadamente ineficaz, no ciberespaço. O acréscimo de outras variáveis complexficou o fenômeno, e como este não era conhecido, aplicou-se a solução disponível, ou seja, o modelo tradicional de ensino para uma situação com peculiaridades próprias. Consequentemente, o caos se estabeleceu!

No ensino fundamental, crianças sendo tuteladas por pais nas atividades escolares, embora os mesmos não estejam preparados para este fim; no ensino médio e superior, a falta de autonomia de aprendizagem, da qual já me referi, aflorou com força total, aliada à apatia dos alunos diante das interfaces informáticas, pois os nativos digitais estão habituados ao ethos da cibercultura, com a dinamicidade própria do ciberespaço. Resultado: mais esforço para o professor, que tenta ensinar, mas o modelo pedagógico adotado é incongruente com a situação de distanciamento entre ele e os seus alunos, e com a tecnologia adaptada que é inadequada. Se houvesse sido adotado o modelo de ensino em massa usando a televisão, que já teve a sua eficácia comprovada e existe o know-how, talvez obtivéssemos melhores resultados imediatos, enquanto se planejaria o ensino a distância saudável, preferencialmente no formato m-learning.

A infraestrutura é outra variável que se apresentou como obstáculo importante nesta problemática. Alunos e professores, na sua maioria, são dromoinaptos. Há falta de conexão, ou quando esta existe, carece de largura de banda – primeiro princípio da cibercultura, conforme já expliquei. As instituições de ensino buscaram amenizar esta carência fornecendo dispositivos e pacotes de dados aos seus alunos carentes.

Na esteira da urgência, segundo a Agência Câmara de Notícias, em 18/12/20,

a Câmara dos Deputados Federais aprovou o Projeto de Lei 3477/20, que prevê ajuda de R$ 3,5 bilhões da União para estados, Distrito Federal e municípios, a fim de garantir o acesso à internet para alunos e professores das redes públicas de ensino em decorrência da pandemia de Covid-19. Serão beneficiados com a iniciativa os alunos pertencentes a famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) e os matriculados em escolas de comunidades indígenas e quilombolas.

Quanto aos professores, são abrangidos os de todas as etapas da educação básica. Segundo a relatora, Dep. Tábata Amaral (PDT-SP), a proposta deve beneficiar 18 milhões de estudantes e 1,5 milhão de docentes durante a pandemia. Tábata citou dados do Datafavela segundo os quais metade dos alunos que vivem em favelas não estudam porque não têm acesso à internet. “O ensino vem sendo impactado com o aprofundamento da desigualdade educacional”, comentou. A relatora acrescentou que a conectividade será fundamental no ano que vem para garantir um modelo híbrido de ensino para alunos e professores em grupos de risco.

A matéria seguirá para análise do Senado.

Reportagem – Eduardo Piovesan e Francisco Brandão
Edição – Marcelo Oliveira

Fonte: Agência Câmara de Notícias

Portanto, conforme explicitei na seção anterior, a crise é uma grande oportunidade para inovar, buscando solucionar problemas crônicos, como o da educação no Brasil.

A resistência do sistema educacional às tecnologias digitais

Vivemos a cibercultura que é pautada, inclusive, pela economia digital. No comércio, o e-commerce já é o novo normal. Segundo o site e-commercebrasil,

o ano de 2020 já pode ser considerado o grande ano do e-commerce brasileiro. Impulsionado pela pandemia, o setor conseguiu agradar novos compradores e as taxas de crescimento não param de subir. De acordo com pesquisa divulgada pela Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm) em parceria com o Movimento Compre&Confie, o faturamento do comércio eletrônico brasileiro alcançou a marca de R$ 41,92 bilhões em agosto. O número se refere ao faturamento somado desde janeiro deste ano.

De acordo com o Movimento Compre&Confie, o crescimento do e-commerce brasileiro no período foi de 56,8% se comparado com os oito primeiros meses de 2019. Embora o tíquete médio tenha reduzido de R$ 420,78 para R$ 398,03, o número de transações efetuadas cresceu 65,7%, indo de 63,4 bilhões para 105,6 bilhões nos seis primeiros meses de 2020. Com esse crescimento, a projeção para o ano de 2020 saltou de 18% para 30% no acumulado anual.

A pandemia gerou a crise e a crise apresentou a urgência da necessidade de adaptação. Deste modo, o comércio migrou com celeridade para o ciberespaço e não haverá volta, acredito. Considerando as diferenças, posso afirmar que é possível fazer uma comparação entre os sistemas comercial e educacional: ambos se desenvolviam no modelo tradicional, não incorporando as características da cibercultura.

Se o comércio reagiu bem à nova situação, o mesmo não aconteceu com a educação Apresentando de uma forma simples, a problemática da educação consiste no descompasso entre o modelo pedagógico tradicional – fortemente behaviorista; professores treinados a ensinar pautados no discurso, isto é, na transmissão de informações, além de não terem sidos formados para usarem as tecnologias digitais para possibilitar a construção coletiva do conhecimento; e alunos nativos digitais que habitam o ciberespaço para viver, conviver e se informar.

A resistência advém da formação inicial e em serviço incipiente do professor, que nos cursos de formação – licenciaturas – não abordam adequadamente (quando abordam) o uso das TDIC no processo de ensino-aprendizagem aliada a adoção de modelos educacionais tradicionais, os quais não conseguem responder às necessidades cognitivas e emocionais atuais, como colaborar, ser proativo, criativo, solidário, pensar na e para a complexidade e desenvolver o pensamento computacional. Em 2019, conclui a orientação de uma dissertação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe intitulada “Formação docente frente às tecnologias digitais da informação e da comunicação: o caso dos cursos de licenciatura da Universidade Federal de Sergipe – campus São Cristóvão”, defendida por Josefa Risomar Oliveira Santa Rosa. Nesta pesquisa

trabalhou-se com a ocorrência da oferta de disciplinas voltadas às TDIC nos vinte e três (23) cursos presenciais de licenciaturas da UFS no campus de São Cristóvão. Os resultados apontam para a constatação da ausência de componentes curriculares em seis (06) cursos, e dos dezessete (17) cursos que apresentam disciplinas articuladas com as TDIC, nove (09) são de natureza optativa. A disciplina, por ser optativa, dá a impressão de ausência de prioridade no conjunto da formação, enquanto deveria ser vista como um instrumento a ser utilizado para manter atualizada a proposta do curso. Conclui-se que as disciplinas voltadas para as TDIC dos cursos de licenciatura da UFS são insuficientes para a formação de professores, os quais impactarão a possibilidade dos futuros licenciados em as aplicarem coerentemente em suas práticas pedagógicas, haja vista que a sociedade evoluiu e o ensino necessita acompanhar essa evolução. (SANTA ROSA, 2019, p.6)

Portanto, embora atualmente os alunos de licenciatura, na sua maioria, são nativos digitais que possuem destrezas com as TDIC, a formação dos mesmos não atende ao requisito de atuar utilizando as TDIC. Ademais, a maioria das escolas ainda utilizam o modelo pedagógico tradicional, resultando no descompasso que relatei.

Por conseguinte, não adianta somente investir em tecnologias, instalando-as nas salas de aula. Primeiramente porque, metaforicamente, as salas de aulas assemelham-se a celas de aulas, hermeticamente fechadas em plena era de liberdade cibercultural. Segundo, porque os professores não as utilizam, pois não foram preparados para este fim. Trago aqui mais uma constatação desse fenômeno, por meio de outra pesquisa que orientei em nível de mestrado e que foi concluída em 2015, com o título “A lousa digital interativa na rede pública municipal de ensino de Aracaju: uma tecnologia digital de informação e comunicação como vetor de transformação cultural”, defendida por Max Augusto Franco Pereira. Lê-se no seu resumo:

Este trabalho busca investigar as potencialidades das Lousas Digitais Interativas (LDI) instaladas em escolas da Rede Pública Municipal de Ensino de Aracaju (RPMEA), com o objetivo de pesquisar o processo de utilização dessa Tecnologia Digital de Informação e Comunicação pelos profissionais do magistério nas escolas do Ensino Fundamental. A pesquisa fundamenta-se no levantamento das características técnico-operacionais da Lousa Digital Interativa, modelos Epson BrightLink® 450/455Wi, como ferramenta de apoio aos processos de ensino e aprendizagem na sala de aula; no estudo da genealogia da sala de aula como ambiente social de significados do processo de educação; na significação e na interdependência entre cultura e educação e na apresentação da transformação da cultura de massas para a cultura das mídias digitais até a cibercultura, como novo paradigma de experiências e subjetividades em conflito com o modelo tradicional da educação escolar, para identificar e analisar quais são as variáveis que dificultam e que contribuem para o desuso da LDI nas Escolas Municipais de Ensino Fundamental da RPMEA, investigadas entre março de 2012 e dezembro de 2014. A metodologia de pesquisa utilizada quanto ao objetivo é exploratório-explicativa, de abordagem quanti-qualitativa, de natureza das fontes documental e de campo levantadas na sede da SEMED e em cinco escolas da RPMEA selecionadas, utilizando-se das técnicas de coleta sistemática de dados através de observações, análises comparativas e registros textuais e fotográficos das condições de instalação da LDI e das redes de suporte técnico e da infraestrutura correspondentes, bem como de entrevistas semi-estruturadas com profissionais lotados na administração, no suporte técnico-pedagógico da SEMED e nas unidades escolares da RPMEA. A análise das fontes seguiu a linha da hipótese proposta, a qual foi confirmada com a execução dos objetivos definidos, permitindo a resposta conclusiva ao problema de pesquisa de que as variáveis que dificultam os objetivos de operacionalização da LDI e de introdução da Cultura das Mídias Digitais na RPMEA são resultantes das contradições entre as aspirações político-pedagógicas do planejamento do ensino da SEMED, os requisitos disponibilizados para a infraestrutura e o suporte técnico nas EMEF e a inconsistência do programa de formação dos profissionais do magistério. (PEREIRA, 2015)

Desde o século XVII com Comênio, considerado o “pai” da didática moderna, por conceber as crianças como seres humanos dotados de inteligência, aptidões, sentimentos e limites e que, assim, deveriam ser respeitadas, até os dias atuais, diante de um Homem que se modifica, a Educação é constantemente impactada. Agora, na cibercultura, nunca foi tão apropriada a frase emblemática proferida pelo educador Paulo Freire: “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os Homens se educam entre si mediatizados pelo mundo”. O ciberespaço, lócus virtual do viver atual, com a sua universalidade sem totalidade, conforme apregoou Pierre Lévy, é o cenário no qual a Educação deve se debruçar a fim de oferecer o desenvolvimento cognitivo e emocional do Homem contemporâneo. Aliada à esta problemática clássica e dinâmica, aconteceu a pandemia - a contingência, trazendo a imprevisibilidade como a única certeza.

Portanto, essa breve discussão apresenta a complexidade da problemática da educação no Brasil, cujos obstáculos têm origens profundas, fato que exige análises em nível ontológico do fenômeno para se buscar soluções eficazes e eficientes. Basta de improvisos!

Henrique Nou Schneider é professor no Departamento de Computação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFS. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Informática na Educação – Gepied/UFS/CNPq.


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