Ter, 19 de outubro de 2021, 17:42

Notas sobre metodologia: entre Kant, Sherlock Holmes e o pesquisador cibercultural (Parte 1)
Geovânia Carvalho

“O dogmatismo é, pois, o procedimento dogmático da razão sem uma crítica prévia da sua própria capacidade”. Kant.

“É um erro grave formular teorias antes de conhecer os fatos. Sem querer, começamos a mudar os fatos para que se adaptem às teorias, em vez de formular teorias que se ajustem aos fatos”. Sherlock Holmes

"A tecnologia não é social porque é usada ou afeta o humano, mas porque o constitui. André Lemos.

Este ensaio está pautado nas duas introduções da Crítica da razão pura (KANT, 1997), e tem o objetivo de apresentar, superficialmente, a formulação sistemática sobre alguns elementos metodológicos de uma pesquisa. Não tive a preocupação de apresentar e analisar os conceitos elementares da referida obra, apenas informar o nascedouro dos postulados científicos da era moderna, incontornáveis para a compreensão das matrizes epistemológicas e metodológicas contemporâneas, ainda que se discuta a hierarquia entre sujeito e objeto. Qualquer que seja o plano de uma pesquisa, os elementos que a constituem, a exemplo do sujeito, objeto e método, deve-se a Kant a sistematização inaugural. O conceito de crítica é um marcador para a ciência, hoje pouco discutido e amplamente usado de forma indevida.

Há de se perguntar se é possível estabelecer uma relação entre o filósofo alemão, o personagem britânico e um pesquisador cibercultural do século XXI, considerando o critério temporal e suas atividades particulares?

Quanto aos dois primeiros é reconhecida a notoriedade no campo da filosofia e da literatura, respectivamente, e atravessam os séculos sob a identificação de “clássicos”. Isto porque, para Ítalo Calvino (1) um clássico nunca nos permite encerrar sua leitura. Estamos sempre relendo, anotando, atualizando as circunstâncias históricas e paradigmáticas da escrita pelo movimento dialético para compreender a atualidade, sem, contudo, concluir um conhecimento inflexível, mas deixando-o em aberto para novas incursões interpretativas. A leitura de um clássico é uma permanente aventura na companhia de Ulisses em retorno à Ítaca ou de Dom Quixote pelos caminhos desviantes da Espanha. Menos importa chegar ao destino, mas, muito mais, viver a experiência do caminho e, em nosso caso, a experiência do caminho em busca da interseção entre realidade e ficção pela leitura de um clássico da filosofia.

Umas das características do clássico é o convite à novas releituras, permitindo a redescoberta do que fora lido e a descoberta do que fora ignorado (não necessariamente por descuido do leitor, mas pela magnitude do texto), porque um clássico nunca encerra o que tem a dizer. E, quanto mais nos dizem, mais têm a dizer e isso exige o tempo próprio do kairós em contraste com a pressa do século XXI. O kairós é a condição para leitura atenta, seu deguste, sua sedução, do estado de pathos e consequentemente do desejo de reposicionar, no presente, o já sabido colocado sob suspeita a partir de sua atualização e a abertura para novas redes e conexões. O estado de suspeita é motivado por um incômodo ou uma insatisfação subjetiva ou epistêmica, ou os dois, preferencialmente, permitindo a revisão e a atualização daquilo que já se sabe e daquilo que já foi dito, mas nunca esgotado. Ou, pela motivação do desejo para experimentar uma outra condição para o sujeito e o objeto. O texto no domínio público, perde a autoria exclusiva do autor na medida em que se permite ser recontado, reinterpretado, refeito e, portanto, ser reescrito. A escritura, antes solitária, passa a ser coletiva e universal.

Portanto, o clássico é um texto curiosamente ambivalente: se de um lado sua escrita está encerrada, da qual identificamos autor, contexto, a ordem das razões segundo Martial Gueroult, local e data, por outro, sua interpretação é móvel, constantemente atualizada, reposicionada, reconstruída por cada leitor a partir de sua subjetivação que busca na identificação do texto, uma terceira identidade provisória. A identidade do clássico é uma inspiração para seus leitores, ponto arquimediano inicial, sabendo que o caminho adota seus próprios desvios, atalhos e modos de ser desbravado.

Dito isso, dizemos que o clássico está presente tanto na literatura quanto na filosofia, nas artes, na ciência. É um pensamento-guia, um elo entre os séculos, a humanidade e as culturas.

Entre Kant, Sherlock Holmes e o pesquisador cibercultural

Essa sessão será dividida em três partes.

I

Dizem que Kant (1724-1804) nunca saiu de sua cidade natal, Konigsberg. Sendo verdade, o que esse filósofo alemão tem de especial a ponto de seus textos, em estilo barroco, serem uma referência clássica para nós, cidadãos ciberculturais, passageiros velozes do século XXI, nômades no ciberespaço? O que esses textos ainda têm a dizer? Por que navegando no oceano de informações que orquestram o mundo globalizado, o discurso kantiano não naufraga diante das tendências paradigmáticas/epistêmicas atuais e, sempre que nos reportamos ao campo metodológico, Kant está protegido das urgências, da pressa, de toda a arquitetura cibercultural em rede ascendente? Qual a peculiaridade dos textos kantianos, qual elixir o mantém jovem e atual, ainda que a sua margem tenha inúmeras notas de superação também clássicas?

Pretendo responder essas questões na parte 2 e 3.

---

Geovânia Carvalho é pedagoga/UFS. Doutoranda em Educação-PPGED/UFS sob orientação do Prof. Dr. Henrique Nou Schneider, na Área de “Educação, Comunicação e Diversidade”. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Informática na Educação/GEPIED/UFS/CNPq.

(1) Por que ler os clássicos, 1993.


Atualizado em: Seg, 25 de outubro de 2021, 16:22