Seg, 25 de outubro de 2021, 16:04

Notas sobre metodologia: entre Kant, Sherlock Holmes e o pesquisador cibercultural (Parte 2)
Geovânia Carvalho

II - A paciência: uma virtude e um recuso metodológico

Ler Kant exige o exercício da paciência - recomendação hegeliana sobre o ato da leitura para a compreensão de um determinado tema e seu conceito. Afinal, filosofia é o exercício da reflexão, buscando a elaboração e a interpretação dos conceitos, suas relações coexistentes, suas dinamicidades, inflexões e flexões, suas possiblidades de existência e sobrevivência na posteridade. Sem a paciência, o texto perde a força, a beleza e a profundidade; é diluída a presença do pensamento reflexivo. Ela é o primeiro requisito para a leitura e a possibilidade de identificar as características de um clássico, de acordo com Calvino. Essa mesma paciência comparece como guia para o pesquisador do século XXI imerso nas exigências da CAPES e para a literatura aqui representada por Sherlock Holmes cujo autor, Sir Arthur Conan Doyle, igualmente a Homero e a Mary Shellen[i] são menos conhecidos do que seus personagens.

A paciência se confunde com virtude e exigência metodológica para a leitura de Kant, Holmes e, da mesma forma, para o pesquisador. A curiosidade os une, o espanto e o desejo de conhecer motivados pela inquietação e insatisfação já citada neste texto. Realidade e ficção se misturam; Kant e Holmes; autor e personagem; filosofia e literatura. Kant, Holmes e nós, pesquisadores ciberculturais, afogados no oceano de informações que não cessam de serem reeditadas, de objetos cujas complexidades nos escapam, forçando a imersão no universo de referências clássicas e suas atualizações.

Num brevíssimo resumo da referida obra, “crítica”, em termo kantiano, é sinônimo de uma investigação intelectual acerca dos limites e das condições para conhecer, ou do conhecimento, tanto no plano filosófico quanto científico. Toda crítica é animada pela insatisfação e pelo estado de suspeita acerca da razão de sua pretensão universal de conhecer ilimitadamente. Nesse sentido, o ponto de partida para o plano crítico kantiano se dirige a duas formas de elaboração do conhecimento a sua época: a primeira, ao fundamento metafísico, herança da idade média sendo organizado em torno do rompimento da relação do sujeito do conhecimento com o mundo empírico e a natureza de seus objetos[ii], vive uma espécie de delírio[iii], de arrogância ao anunciar a creditação exclusiva da razão para conhecer absolutamente tudo, considerando-se autorreferencial e autossuficiente no processo do conhecimento; e a segunda, ao conhecimento fundado na experiência, passagem para o ceticismo.

Assim, a filosofia kantiana é um guia para as ciências de um modo geral e para a compreensão dos elementos que compõem o plano metodológico de uma pesquisa, em especial, a sua obra Crítica da razão pura, cuja primeira edição data de 1781. O plano da crítica é inventariar os limites do conhecimento, adotando a questão norteadora “quais as condições de possiblidade do conhecimento?” para a investigação e determinação sobre 1-o que é possível conhecer? (objeto), 2-quem é o sujeito do conhecimento? e 3-como (método) é possível conhecer?, considerando as categorias a priori do sujeito do conhecimento: espaço (onde se situa o objeto) e tempo (quando, delimitação temporal histórica das ciências e da filosofia?). Para Kant, o estabelecimento das categorias espaço e tempo blindam o conhecimento dogmático da metafisica. A crítica é um elemento limitador, um operador intelectual universal sistemático e legítimo para a possibilidade de conhecer a partir do plano epistemológico possível, guiado por uma racionalidade auto vigilante que reconhece a limitação de seu alcance.

Diante desse quadro epistemológico, Kant estabelece sua crítica, deslocando a razão de um trono inatingível para um tribunal intelectual composto por uma racionalidade que considera os dados empíricos, encaminhando a filosofia e as ciências para uma nova visão paradigmática. A pedra angular dessa virada parte das duas considerações filosóficos inconciliáveis até então, nos permitindo dizer que a síntese kantiana se dá entre dois rochedos paradigmáticos: o racionalismo extremado cartesiano, sustentado pela razão divina e a universalidade matemática, com pretensão de alcance ilimitado sobre o conhecimento universal e indubitável; e o empirismo inglês de Hume, cuja fundamentação para o conhecimento são os hábitos e os costumes, com o comparecimento da razão se limitando a organizar as informações fornecidas pelos sentidos, origem de todas as experiências, objeto e fundamento do conhecimento.

O exercício da leitura paciente virtuosa e metodológica proporcionou a Kant não somente a releitura de dois clássicos da filosofia - Descartes e Hume - mas também, a reinterpretação atualizada viabilizadora da abertura para sua reescrita, da qual resultou a nova apresentação dos fundamentos paradigmáticos, epistemológicos, metodológicos, filosóficos e científicos para a era moderna.

Tal procedimento crítico causa uma reverberação sísmica de alta escala para a filosofia e as ciências, com ressonância em todas as dimensões humanas. Embora refute o extremismo racionalista de Descartes, Kant mantém a hierarquia entre sujeito e objeto, fato questionado, por exemplo, nos limites da fenomenologia, do pensamento complexo, da etnocenologia e de outros métodos das ciências humanas[iv] . Todavia, a síntese kantiana promove um equilíbrio entre razão e experiência, afirmando que ambos são modos distintos de conhecer, concordando com Hume, que todo conhecimento nasce da experiência (senso comum), mas o corrigindo, afirmando que não se funda nela. É preciso o comparecimento da razão para organizar os dados sensíveis no espaço e no tempo - categorias a priori para o estabelecimento das condições de possibilidade do conhecimento. Ou seja, a metafísica dogmática cartesiana assegurada por Deus sofre um vexame no que se refere aos seus objetos e fundamentos, retirando da cena científica temas como Deus, imortalidade e liberdade[v], além de classificar duas esferas de conhecimento: o prático (moral) e o científico.

Daremos continuidade ao tema na terceira e última parte deste ensaio.


Geovânia Carvalho é pedagoga/UFS. Doutoranda em Educação-PPGED/UFS sob orientação do Prof. Dr. Henrique Nou Schneider, na Área de “Educação, Comunicação e Diversidade”. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Informática na Educação/GEPIED/UFS/CNPq.

[i] Odisseia e Frankstein respectivamente.

[ii] Ciências particulares. Para Kant não é possível um método universal para conhecer tudo indistintamente e nem tudo é objeto de conhecimento científico. Por isso, sua epistemologia reconhece a distinção entre os objetos passíveis de ciência pertencentes ao plano da razão pura e a moral no plano da razão prática.

[iii] Para Morin, trata-se de uma cegueira da razão origem das patologias epistêmicas modernas.

[iv] A intenção não é discutir a diversidade metodológica contemporânea das ciências humanísticas, mas apresentar a relevância do pensamento kantiano para o progresso das ciências, especialmente a crítica sobre as condições de possiblidade do conhecimento ao demonstrar a insustentabilidade da metafísica no que se refere à pretensão de universalidade e totalidade acerca do sujeito e do objeto. As condições e as imposições metodologias defendidas por Kant é um divisor de águas inflexível sobre a possiblidade de conhecer, independente da particularidade metodológica. As condições das categorias a priori do espaço e tempo na qual o sujeito possa identificar o objeto, marcam o início de uma nova era paradigmática, afastando a sombra do dogmatismo metafísico.

[v] Ideias não demonstráveis no mundo empírico.


Atualizado em: Seg, 25 de outubro de 2021, 16:14
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