Qua, 20 de agosto de 2025, 12:10

O percurso do caminho sem atalho se chama "reparação"
Cotas e transformação social: história e dados mostram porque as políticas de ações afirmativas ainda são essenciais nas universidades públicas

No Brasil, o debate sobre cotas raciais nas universidades ainda provoca divisões extremas de opinião, dúvidas e, muitas vezes, desinformação. Há quem veja essa política pública como privilégio e quem veja como justiça histórica. Mas, mais do que opinião, o tema exige pesquisa, dados, contexto e escuta de quem vive o impacto das ações afirmativas no cotidiano.

Aqui, na Universidade Federal de Sergipe (UFS), a campanha institucional sobre cotas vai além de explicar o óbvio da lei: ela defende uma política sólida de ações afirmativas que garanta o acesso e a permanência com dignidade para estudantes não brancos, inclusive na pós-graduação.

“A escravidão no Brasil durou mais de 300 anos e terminou sem nenhuma política de integração para a população negra. Não houve terra, educação, nem direitos básicos garantidos. E isso não é um passado distante, é a base das desigualdades de hoje”, explica a professora e historiadora, Edna Maria Matos Antônio. Ela lembra que esse abandono se traduziu em um padrão duradouro: a população negra, liberta sem condições mínimas de cidadania, foi empurrada para a pobreza, excluída das escolas e de cargos de prestígio. “O racismo não é um erro individual, é uma engrenagem que organiza quem pode ou não pode acessar direitos. É o que chamamos de racismo estrutural”


Professora e historiadora Edna Maria Matos Antônio (Foto: Elisa Lemos/Ascom UFS)
Professora e historiadora Edna Maria Matos Antônio (Foto: Elisa Lemos/Ascom UFS)

Vamos a uma breve linha do tempo das cotas raciais no Brasil: em 2002, a UERJ realiza o primeiro vestibular com cotas raciais em nosso país; em 2004, a Universidade de Brasília se torna a primeira federal a adotar as cotas raciais; só em 2012, dez anos depois do primeiro vestibular no Brasil com cotas, que é instaurada a Lei nº 12.711/2012 (Lei de Cotas) que determina a reserva de vagas em todas as instituições federais; em 2014, o STF declara constitucionais as cotas raciais confirmando que as leis que estabelecem essas cotas em concursos públicos e universidades são válidas e não violam a Constituição Federal; em 2022, temos essa mesma Lei revisada e mantida com novos ajustes a respeito da ampla concorrência.

Segundo o IBGE, entre 2010 e 2018, o número de estudantes pretos e pardos nas universidades públicas quase dobrou, passando de 1,94 milhão para 3,43 milhões. Pela primeira vez, eles se tornaram maioria nesses espaços: 50,3% dos matriculados. Dados do INEP mostram que o rendimento acadêmico médio dos cotistas é igual ou superior ao dos não cotistas, derrubando assim mais um argumento comum de quem não concorda com essa política quando se fala em “manter o nível dos estudantes”. “Há muito mito em torno das cotas. Um deles é a ideia de que o cotista é menos capaz. Outro é o da ‘inversão do racismo’. Reparar uma desigualdade histórica não é discriminar — é corrigir distorções para garantir igualdade real de oportunidades”, reforça Edna.


Fabiane Ferreira é formada em Serviço Social pela UFS e atualmente é mestranda na mesma área. Em ambos os processos seletivos se inscreveu como cotista (Foto: Elisa Lemos/Ascom UFS)
Fabiane Ferreira é formada em Serviço Social pela UFS e atualmente é mestranda na mesma área. Em ambos os processos seletivos se inscreveu como cotista (Foto: Elisa Lemos/Ascom UFS)

Fabiane, estudante cotista do mestrado na UFS, entrou na graduação há dez anos pelas cotas sem entender muito bem o que isso significava. “Eu sabia que era um direito e usei, mesmo sem saber o porquê. Só depois fui entender a importância de estar aqui”. Hoje, ela vê nitidamente como a política mudou o rosto da universidade: “Eu olho pra universidade e vejo uma composição completamente diferente do que eu vi há dez anos atrás. Tem mais pessoas parecidas comigo e digo isso até pras pessoas da minha família que ainda não entendem e questiono: será que a gente teria conseguido acessar esses espaços que estamos sem as cotas?”. Mas ela também chama atenção para um desafio: a permanência. “Na graduação, eu me sentia protegida. Tinha residência, bolsa, apoio. Já na pós foi muito diferente. Fiquei seis meses sem bolsa, sem casa, sem emprego. Completamente desassistida”.

A fala de Fabiane ecoa na análise de Edna: “O critério social é importante, mas sozinho não dá conta da desigualdade racial. E garantir acesso não basta, é preciso garantir que esses estudantes permaneçam, concluam seus cursos e avancem na carreira acadêmica, se quiserem. Isso inclui apoio financeiro, psicológico e de infraestrutura”.

Para Edna, quando a universidade assume uma política robusta de ações afirmativas, ela não está fazendo um favor: “Está cumprindo sua função social como instituição pública. É dizer: o conhecimento e o espaço acadêmico são para todos”.

Campanhas como essa em andamento na UFS ajudam a reforçar essa mensagem. É um compromisso institucional com a justiça social, diversidade e a construção de um futuro menos desigual. Um caminho longo, sem atalhos e com muitas placas de sinalização pelo trajeto.

Elisa Lemos - Ascom UFS


Atualizado em: Qua, 20 de agosto de 2025, 15:42
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