Seg, 17 de fevereiro de 2020, 17:34

Resenha de “Uma jornada como tantas”, de Francisco Dantas
Marcio Santana
Sétimo romance do escritor Francisco Dantas, professor aposentado da UFS (Foto: Adilson Andrade/AscomUFS)
Sétimo romance do escritor Francisco Dantas, professor aposentado da UFS (Foto: Adilson Andrade/AscomUFS)

"Monte na bestinha melada e risque!" Lembram da música? "Vá ligeiro buscar Samarica parteira que Juvita já tá com dô de menino", cantava e contava Seu Lua naquele inesquecível tom improvisado e galhofeiro. A jornada que se narra no sétimo romance do escritor Francisco Dantas, Uma jornada como tantas (Alfaguara, 2019), se passa nesse tempo em que se corria para buscar a parteira, mas é música tocada em uma clave bem diferente.

Pouco ou nada tem de galhofa o que conta o então menino Valdomiro, narrador dessa história ambientada no interior de Sergipe, em 1954. Da primeiríssima à última linha, provamos um gosto de tragédia. Partimos de um “tempo carregado de nuvens cinzentas” e solavancamos o tempo inteiro contra um fato incontornável: uma criança que precisa nascer e não há meios disponíveis.

Valdomiro recebe a missão de acompanhar, de seu fim de mundo a outro, de Borda da Mata até Rio das Paridas, sua mãe de adoção, a Madrinha, com o quarto filho atravessado após um pequeno acidente. Empapada em suor e sangue ela viaja — por falta de qualquer transporte menos inadequado — num carro de bois na esperança de parir e sobreviver se chegar ao seu destino.

Do ponto de vista narrativo, essa poderia ser apenas uma escolha em consonância com a época em que o romance se situa. Mas nas mãos desse escritor que surgiu pronto — celebrado desde seu tardio romance de estreia, publicado aos 50 anos —, é nesse carro de bois que toda a narrativa se pendura, com a tensão galopando quanto menos os animais caminham, e a Madrinha e a madeira das rodas gemem. Esse passo vagaroso ante a urgência das circunstâncias, e outros contratempos vários, fazem com que a angústia cresça na comitiva que acompanha a gestante e, por sua vez, no leitor.

O único modo de lutar contra essa asfixia é ler buscando o desnovelar da trama. Nessa hora, as páginas voam dos capítulos curtos deste romance enxuto, de poucas e decisivas personagens, em que tudo é muito bem aproveitado: as cuidadosas e pormenorizadas descrições dos fazeres da marceneira, pelas mãos de Teodoro, esposo da Madrinha e das partes do carro de bois e da ciência que é a lida com estes bichos, pelas mãos de Zé Carreiro, responsável pela empreitada de transportar a gestante, e outras descrições do tipo não estão ali por enciclopedismo ou registro de obsolescências, mas se prestam a devassar os mundos em que tais figuras habitam em suas atividades diárias, levando-nos a seu passado, suas escolhas, e tudo que acabou por moldar-lhes a fibra.

É depois de passados muitos anos que o narrador está recolhendo as memórias de sua jornada de garoto e buscando transfigurar imagens em palavras. E é curioso o dilema que vivencia com uma culpa que nunca sabemos se é real, objetiva, ou a imaginária de quem, por muito amar, se ressente do rumo que as coisas tomam. Ele constantemente se culpa e se cobra, teme reprimendas, e sente-se inútil por não poder fazer mais.

Sem ativismos e sem fugir à literatura, o livro acaba por demonstrar de forma bastante lúcida a precariedade das condições de vida num ambiente de desmandos por parte daqueles que ocupam o poder sem qualquer preocupação com o povo — chaga ainda muito presente na vida dos brasileiros. É possível enxergar, através dessa história, como claramente tais sujeitos são corresponsáveis pelas aflições narradas no livro e por outras tantas na vida real.

A fragilidade da condição humana se revela de modo sublime pela sinceridade quase cruel do narrador ao expor os conflitos que trava consigo mesmo e com outros, bem como entre aqueles que acompanhavam a Madrinha, especialmente quando a viagem se aproxima de seu término. Mas esse é um daqueles livros cujo final ninguém metido a crítico literário deve antecipar, senão deixar a quem se der ao prazer de ler esta obra. Monte na bestinha melada e risque! Será uma jornada como poucas.

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Marcio Santana Sobrinho é jornalista.

Texto publicado no Jornal da Cidade em 13/02/2020.


Atualizado em: Ter, 18 de fevereiro de 2020, 12:06