Seg, 24 de janeiro de 2022, 16:59

A dignidade do contido: algumas palavras sobre a poesia de Jeová Santana
Luiz Eduardo Oliveira

Em texto publicado aqui mesmo no Portal da UFS sobre Poemas Passageiros (UNEAL, 2011), primeiro volume de poesia de Jeová Santana, afirmei que ele era mais poeta do que qualquer outra coisa, dentre as várias atividades que exercia ou ainda exerce, incluindo a de professor, da Universidade Estadual de Alagoas e da rede estadual de Sergipe, radialista, letrista de música, cronista e, sobretudo, contista. Aliás, quanto a esta última atividade, todos que acompanhavam a sua produção desde os seus tempos de estudante de Letras, nos anos 80, quando já era colaborador assíduo dos jornais e periódicos locais, como os suplementos literários ArteLiteratura, da Gazeta de Sergipe, e Arte&Palavra, do extinto Jornal da Manhã, e o Caderno de Estudante da UFS, e premiado em concursos literários, figurando também em algumas antologias, ficaram surpresos ao verem que sua obra de estreia era uma coletânea de contos, Dentro da Casca (FUNDESC, 1993), ao contrário do que se esperava, e ele não parou por aí, publicando em 2002 A Ossatura (Editora do Autor, Recife) e em 2006 Inventário de Ranhuras (Brasília, 2006), que considero seu ápice na arte do conto. Deixei meu testemunho crítico com relação à sua prosa de ficção em “O silencioso ofício de Jeová Santana”, artigo publicado no Jornal da Cidade em duas partes, nos dias 28 e 29 de maio de 2003, e em “Entre cascas, ossaturas e ranhuras: a contística de Jeová Santana”, texto publicado no Cinform no dia 10 de abril de 2006.

Com o parágrafo acima, o leitor já pode perceber que foi com muito prazer que li Estilhaços, a mais recente coletânea de poesia de Jeová Santana, publicada no finalzinho de 2021 pela editora Mondrongo, que no dia 21 de dezembro promoveu uma noite de poesia sergipana lançando os livros Indecenteanas - A Pausa, de Marcos Moura Vieira; Atávica, de Daniela Coelho; e Caderno Croqui, de Ronaldson; além do já mencionado Estilhaços. A militância do editor, Gustavo Felicíssimo, que também publicou a obra completa de Iara Vieira, tem sido um alento no atual mercado de livros da região nordeste. Jeová Santana, aqui, emerge como um poeta experiente, o que já se anuncia tanto nas epígrafes de Augusto dos Anjos, Tom Jobim e Chico Buarque quanto na belíssima dedicatória, “A Deni, cujo amor me salvou de mim”.


A mais recente coletânea do autor, Estilhaços, foi lançada no final de 2021 (Imagem: Divulgação)
A mais recente coletânea do autor, Estilhaços, foi lançada no final de 2021 (Imagem: Divulgação)

Já em Solo de Rangidos coletânea publicada em 2016 pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos, de Maceió, Jeová havia feito uma revisão crítica de sua trajetória e de sua própria poética, retomando poemas que foram publicados nos suplementos literários nos anos 80. Aos temas mais recorrentes de sua poesia – a viagem, o erotismo, a metalinguagem, a literatura, as mulheres, a cidade (Maceió, Aracaju ou São Paulo) –, somam-se tópicas que vão se repetir em Estilhaços de maneira grave, mas igualmente comedida: a família, o tempo e a morte. Comedimento, com efeito, é a palavra-chave da primeira parte do livro, intitulada “Uns Antes”, algo que é anunciado nas epígrafes de Proust, Clarice Lispector, Marly de Oliveira e Augusto Massi.

Solo de Rangidos conta com alguns hits de Jeová Santana, que são poemas premiados, já publicados em jornais e conhecidos de seus leitores, como “Ruminância”, que traz onze estrofes de três versos cada com uma abertura arrebatadora: “Entre o poeta / e o papel / o incesto”; “Rua da Frente”; o excelente “Carmen, o Poema”, composto em 1986, num congresso de estudantes de Letras em Brasília, numa ocasião em que eu estava presente; “Poema Apressadinho”; “Pausa”; “Close” e “Carranca”. São dessa fase também os versos de “Confissão I”:

Nunca serei um Drummond
nunca serei um Bandeira
nunca serei um Pessoa

Quero apenas
Que os meus versos tenham
A utilidade dos galos na antemanhã

No entanto, o que chama mais a atenção na coletânea é a reflexão sistemática desenvolvida pelo poeta a respeito do tempo. “Tempoesia”, que possui nove estrofes de três versos cada, traz o primeiro exercício do poeta sobre o assunto, cujo vocábulo é repetido no último verso de cada estrofe, precedido das preposições “do”, “no” e “sem”, e ressignificado para cada situação ou cena apresentada. Em “Retrato”, o poeta vislumbra rostos e “passos pétreos” numa fotografia dos anos de 1920:

Me amarro:
esquinas
1920
Estes rostos, passos pétreos
e há sempre um menino
espiando o futuro.

“Travessura” retoma a reflexão, que é continuada em “Olvido” (Ó tempo, triuturai / com mais leveza”) e se confunde com a morte no melancólico “Confronto”: “Quando vier o inadiável / pousai entre velames e avencas / a magrém deste corpo gasto / enquanto a tarde despenca”. O tema da morte, realista em “O Povo de Deus”, reaparece de maneira (anti)religiosa em “Profecia” (“Será feita a Vontade”) e dá o tom grave dos demais poemas dessa primeira parte, do qual não escapa a drummondiana/cabralina homenagem ao falecido poeta Araripe Coutinho, que no último verso faz referência ao “país” que “é apenas risos pálidos”, e perpassa o excelente “Lonjuras”, em que o poeta pergunta a uma “Pálida Mulher”: “- Ensina-me de que lado se põe / a ilusão de sermos eternos”.


Poeta Jeová Santana (Foto: Davi Ernesto)
Poeta Jeová Santana (Foto: Davi Ernesto)

Como uma sombra que insiste em aparecer nas cenas e imagens mais solares, ou uma música incidental que alerta o leitor acerca dos recantos mais obscuros de sua poesia, o tema da morte ressurge em Estilhaços (2021) já no segundo poema da primeira parte do livro (“Palavração”), intitulado “Quadrinhazinha”, que busca expressar o aparente absurdo que é encontrar consolo na poesia:

Um desejo, uma loucura:
Acreditar que um verso
Há de consolar os aflitos
E tocará a face do eterno.

A morte também emerge em momentos melancólicos e saudosistas, como em “Drummonagem”, composição de três versos que evoca o saudoso poeta aracajuano Araripe Coutinho:

Nosso Araripe morreu.
Eis uma bela redondilha.
Mas como dói, minha gente!

Em Solo de Rangidos (2016), o tema da família, a quem são dedicados os Poemas Passageiros (2011), aparece como uma espécie de reminiscência na qual o poeta fala como um eu feminino, evocando, não raro, a imagem de sua mãe, seja de modo sutil, como em “Cantiga II”, seja de maneira quase explícita e prosaica, como em “Canal Cem”. A figura do pai, José Jardelino de Santana, aparece numa epígrafe à segunda parte do livro, “Uns Depois”: “Esse negócio de poesia parece uma pessoa conversando sozinha no meio da rua”. Já em Estilhaços (2021), sobretudo na segunda parte, intitulada “Andarilhagens”, a evocação do pai, e sobretudo da mãe, falecida recentemente, são motes cuja delicadeza reveste a sua poesia de um tom ao mesmo tempo seco, pela concisão cabralina com que trabalha seus versos, e emocionalmente tocante, como em “Irreversível”, primeira de “Quatro aquarelas para blindar o tempo”:

Quando a vida diz a que veio:
a mãe torna-se um pesado bebê
a boiar numa banheira
de sonhos e sombras.

Ligado ao tema da morte, o tempo, objeto de uma reflexão sistemática em Solo de Rangidos (2016), ressurge nos mais variados contextos, até mesmo quando “escorre pelo ralo da pia”, como diz o poeta na primeira de duas “Instâncias”. Já na terceira parte do “Terceto para corte e costura”, ironicamente intitulada “Cafezinho entre Shakespeare e Nietzsche”, é feita a seguinte provocação: “Se realmente há espírito... / Como, então, desejar / que ele descanse em paz?”. Um recurso formal já utilizado por Jeová em Poemas Passageiros (2011) e que passa a ser usado com mais inventividade em sua segunda coletânea de poesia é a enumeração de vocábulos no mesmo verso, desconstruindo ou invertendo a sua função sintática, como em “Futurema”: “O copo amarelo de cerveja / garçom sol algas marinhas”.
Na segunda parte de Solo de Rangidos (2016), em que os poemas não têm títulos, a metalinguagem, a poesia que tem a poesia como tema, os meandros, desacertos, arestas e operações da escrita do poema, do fazer poético, se sobressaem, algo já anunciado na primeira parte, nos poemas “A Ceia” e “Domesticação”. Em Estilhaços (2021), contudo, a literatura não é somente um tema, mas a musa, um objeto de reflexão e de adoração. É como se o livro fosse uma homenagem à poesia, como deixa entrever o poema de abertura, “Prelúdio”:

A poesia só quer um minuto de silêncio,
A poesia só quer um minuto de atenção.
Quem sabe um único verso
seja a causa de tua aflição.

Nessa espécie de louvor à literatura, há um componente didático que convém ressaltar. Jeová Santana é também professor de literatura, e essa faceta já se esboça em Solo de Rangidos (2016), através de poemas como “Estratégia”, em que imita a estrutura frasal dos planos de curso (“Ao final da aula os alunos deverão ser capazes de:”), e “Semestre”. Em Estilhaços (2021) essa tendência não se restringe a títulos ou situações de sala de aula, mas expande-se para a própria matéria que o poeta/professor leciona, daí a fartura intertextual de tantas referências literárias, como se pode ver pelos seguintes títulos: “Rascunho perdido num livro de Neruda”; “Viniciana”; “Lamento para Jorge de Lima (A caminho do Muquém)”: “A casa de Jorge de Lima”; “Drummonagem” e o fascinante “Mulher,”, no qual, além de nomear criticamente duas mulheres estereotípicas do cancioneiro brasileiro, “Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago, e “Emília”, de Haroldo Lobo, homenageia escritoras como Cecília Meireles; Henriqueta Lisboa; Clarice Lispector; Hilda Hilst; Orides Fontela; Ana Cristina César; Maria Carolina de Jesus; Lya Luft; Ana Miranda, Iara Vieira; Maria Lúcia Dal Farra; Suzana Vargas; Neide Arcanjo e outras, todas elas leitoras ávidas “do que se tece noutros mundos”, como diz.

Outro aspecto didático da poesia de Jeová Santana que tem a ver com sua atividade de professor de literatura, e que transcende o “Dever de escola” e o “mau combate” da sala de aula, é a variedade de formas que são usadas pelo poeta não somente à guisa de experimentação, mas também como busca da melhor forma de dizer o poema, o que cede espaço para a emulação e subversão dos modelos mais canônicos, sobretudo os drummondianos e cabralinos, com os quais está mais familiarizado. Assim, o leitor se depara com poemas de verso livre e marcados pelas formas coloquiais da linguagem, o que não exclui gírias e palavrões, mas também com experimentos concretistas e formas fixas, clássicas e consagradas, como o soneto. Nessa perspectiva, Estilhaços (2021) se configura também como um ensaio ou aula sobre poesia.

Quando escrevi sobre Poemas Passageiros (2011), observei que os momentos mais fracos do livro apareciam quando o poeta tentava fazer uma crítica social de feição jornalística. Em Estilhaços (2021) não podemos dizer o mesmo. Seja pelo aperfeiçoamento da prática de cronista exercitada em alguns textos publicados nas redes sociais e no blog Brasil 247, seja pela própria conjuntura política que vivemos atualmente no país, o poeta nos surpreende com requintados flagrantes de realismo, como em “O sono dos justos”: “Aqui, embaixo da marquise / do banco mais rico do país / enquanto a temperatura cai / cada vez mais, sem piedade”.

Personagens que se tornaram vítimas e mártires desses tempos neofascistas, como Amarildo e Marielle Franco, por exemplo, evocados em “Baculejo”, estão muito longe de se configurar como uma manifestação panfletária, tão comum nos dias atuais, mesmo na literatura, pois o poeta não os nomeia como algo externo à sua poesia, mas como parte do arcabouço do poema, submetido que está aos pressupostos de sua poética, cerzida nas cesuras, na depuração de vocábulos e adjetivos desnecessários, na economia, na “dignidade do contido”, como diz Augusto Massi, citado numa das epígrafes de Solo de Rangidos (2016), que anuncia a receita, iniciada em Poemas Passageiros (2011) e explorada com maestria em Estilhaços (2021), livro no qual Jeová Santana se afirma como um poeta maduro, sofisticado e multifacetado, atento às profundezas dos grandes temas filosóficos que nos perseguem, como o tempo e a morte, às minúcias e sutilezas da poesia e do fazer poético, mas também à violência estrutural e cotidiana na qual estamos todos enredados.


Luiz Eduardo Oliveira é professor titular do Departamento de Letras Estrangeiras e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFS.


Atualizado em: Seg, 24 de janeiro de 2022, 17:04
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