Seg, 30 de outubro de 2023, 15:56

A desandada de Luiz Eduardo Oliveira
Raquel Freitag

Adoro a leitura despretensiosa de histórias, em especial as histórias que traçam memórias afetivas com lugares com que eu tenho memórias afetivas também. Foi por isso que li em uma única sentada a Desandada, de Luiz Eduardo Oliveira. Gosto de narrativas de infância, das brincadeiras, dos fatos, dos lugares, ainda que fatos e ficções se misturem. Solo de Clarineta para autobiografia, a série Traçando... (em especial Porto Alegre, mas tem Paris e Nova Iorque), do Veríssimo filho, e Pequeno Nicolau, de Goscinny. Ah, a inocência da infância.

Mas essa não é uma narrativa autobiográfica, porque logo aparecem dados que não batem com o que eu conheço da vida de Eduardo. Talvez uma autoficção. Não sei, não sou da literatura, me perdoem por não ser precisa em caracterizar o gênero.

Eu gosto mesmo é desse turismo literário doméstico. Morei e ainda moro nas regiões que Eduardo situa as ações, passei e ainda passo pelas ruas e pelos lugares. Comprei muito tricogaster na Duca Aquário, já administrada pelo filho, não mais pelo pai da narrativa de Luiz Eduardo.

Mas além de leitora eu sou pesquisadora, mais especificamente, eu sou sociolinguista. E a leitura de Desandada como pesquisadora também me despertou inquietações. Eu conheço Eduardo, e consegui performar todas as histórias, na minha imaginação, eu conseguia ouvi-lo falando. Não deixava de pensar o quanto era Eduardo mesmo contando a história, isso é a cara de Eduardo! Eu pensei várias vezes. Mas não foi pelas pistas linguísticas que ele deixou no texto.

E ele se esforçou para deixá-las. Uma narrativa é um turno interacional. A escrita da primeira parte de Desandada é marcada por uma linearidade de turno, começa, e termina com um ponto final só ao concluir a história. Subverter a norma, convenções de pontuação, tem um objetivo, trazer uma linearidade da fala. Sem letras maiúsculas, como faz Saramago, a leitura linear segue a sintaxe da fala, e para quem está acostumado com o padrão aracajuano, com as perguntas que não são perguntas, mas marcadores com prosódia ascendente para articular o texto (e é doidjo, é), a leitura fica fluida.

Mas ao mesmo tempo que eu sentia a sintaxe, algumas coisas me incomodavam. Eu conheço Eduardo há quinze anos e nunca ouvi palatalizações progressivas na sua fala (jeitcho). Também nunca ouvi não concordâncias em contextos nominais. Então, apesar das pistas gráficas para certas realizações, eu não conseguia fazê-las na minha performance da leitura, nas cenas que eu montava na minha cabeça. Apesar de me envolver com o enredo, as marcas formais me inquietavam, o que ele quer com isso? Até ele chegar a São Paulo.

Quando Eduardo chega em São Paulo, a sua língua muda. Ali eu consegui enxergar o Eduardo linguístico que conheço.

Manipular a língua para construir personagens é uma estratégia utilizada de maneira consciente ou inconsciente por autores e editores. Orientei três dissertações que trataram do tema. Uma delas sobre como a fala de entrevistas de MvBill era manipulada a depender do público, com a seleção de traços linguísticos da oralidade na representação ortográfica, outra sobre como Gilberto Amado usou os pronomes para marcar proximidade e distanciamento de personagens em Memórias da minha infância, e outra ainda sobre como a edição em Feijão de cego, de Vladimir Carvalho, excluiu os termos de baixo calão da versão original. Por isso, a leitura de Desandada me chamou a atenção também como pesquisadora. O que o autor quis com o uso de traços da oralidade na sua escrita? Mas a questão vai além: eu não estou lendo Carolina Maria de Jesus, mas o que o professor doutor Luiz Eduardo Oliveira escreveu. Serasse quando Eduardo era jovem falava assim? Quando foi pra São Paulo, o contraste entre as variedades linguísticas fez com que ele despertasse a consciência sobre a língua e as relações de poder instauradas.

É no capítulo LI que Eduardo nos conta a sua tomada de consciência:

Depois vi que o povo falava pão francês, é o sotaque que eles estranham, Lúcio me explicou, aí eu perguntei e a gente só pode falar paulista aqui, é? Quando isso começou a me prejudicar no trabalho comecei falar mais explicado e a suavizá minha pronúncia de palavras como tio, tia, tiro, dia, que eu procurava falar tchio, tchia, djia, depois me preocupei cum verbo no plural, a dizer eles brigavam e não eles brigava, e também com r no final das palavras, dançar e não dançá, como a gente fala, e cum as vogais, dizendo com e não cum, não em vez de num, muito e não muitcho,a gente sempre fala o e como é e o o como ó, eles como ê e ô, a gente diz Jésus, eles Jêsus, e ainda tinha o lance do s, eu evitava falar suxto ou cuxto e falava susssto e cusssto, se eu chegasse falando assim em Aracaju os caras iam tirar a maior onda.

Depois disso, ele simplesmente muda a sua língua. A narrativa segue com a sintaxe de Eduardo, aracajuana, com suas marcas, com seus caraio, e outras gírias, com formas informais (o “a gente” continua), mas dentro do padrão ortográfico.

Essa questão é complexa e muito oportuna. Em 2021, a nova edição de Casa de alvenaria, de Carolina Maria de Jesus, mediante decisão de um conselho curador, respeita a escrita original, com sua ortografia e marcas gramaticais. Seria respeito à produção da escritora, reconhecendo uma variedade da sua interseccionalidade de mulher sem instrução formal, negra, favelada, representativa de parcela da população brasileira? Ou seria uma exposição desnecessária, já que o papel da edição é dar visibilidade ao texto da autora? Prevalência do estético pelo linguístico ou pelo estético pelo conteúdo? Oras, como já disse, Eduardo é professor doutor. Deliberadamente inseriu estas marcas. Seria a sua Desandada mudar o seu modo de falar? Seria a sua Desandada ser conformado por um padrão para ser aceito e valorizado (e a minha leitura preconceituosa só reforça essa hipótese)?

A dominação linguística é real, e se Desandada é autoficção, revela o despertar para o preconceito, desvelando uma camada da cebola que somos nós mesmos.

A obra dá margem para muitas reflexões: qual é o papel da edição do texto no processo editorial em relação à norma linguística? Qual é a norma de referência? Mexidas na ortografia são necessárias para caracterizar personagens, como faz Eduardo, ou a sintaxe dá conta, como em Feijão de Cego? Memórias da minha infância, de Gilberto Amado, sinaliza as manipulações na ortografia com itálico, autor se distancia e demonstra que domina a norma padrão; em Desandada, o domínio da norma padrão aparece após a tomada de consciência do preconceito linguístico, e a arma para sobreviver é se admoestar à norma padrão, modo como o texto segue. Essa foi a Desandada? Vou aguardar as próximas. É uma excelente oportunidade para discutir sociolinguística sem ser panfletária.

Raquel Freitag é professora do Departamento de Letras Vernáculas.


(Foto: Adilson Andrade/AscomUFS)
(Foto: Adilson Andrade/AscomUFS)
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