Sex, 22 de março de 2024, 14:31

Flagelo (1954), de Armindo Pereira: um romance atravessando o rio Lete
Antônio Fernando de Araújo Sá é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe
Fernando Sá (Foto: Dayanne Carvalho/bolsista Ascom-UFS)
Fernando Sá (Foto: Dayanne Carvalho/bolsista Ascom-UFS)

Impactado com a leitura do romance Flagelo (1954), de Armindo Pereira, surpreendeu-me as poucas informações sobre o escritor sergipano nos mecanismos de busca pela enciclopédia do século XXI, a WEB, com escassas menções de pesquisas acadêmicas e jornalísticas, configurando sua turbulenta trajetória pelo rio Lete da história literária.

Nascido em Aracaju, a 8 de setembro de 1922, dedicou-se ao jornalismo tanto em Sergipe, como revisor da Imprensa Oficial de Sergipe e editor do órgão cultural independente, Símbolo, criado em 1939, como no Rio de Janeiro, após transferir-se, em 1941, colaborando, dentre outras, com a revista Leitura, ao longo das décadas de 1940 a 1970 (OLIVEIRA, 2014: p. 66). Em sua passagem pela imprensa sergipana, era considerado como um dos jovens intelectuais mais promissoras da nova geração (SANTOS, 2019: p. 245-247).

Na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, foi-me possível inventariar o impacto do seu primeiro romance, Flagelo, publicado em 1954, pela Organização Simões, do Rio de Janeiro. Apesar da sua boa recepção de público e crítica, como registrada na propaganda do livro, publicada no Jornal de Letras (RJ), que afirmava estar quase esgotada (Ano VI, n. 61, julho de 1954: p. 7), foi a segunda edição, publicada pela editora O Cruzeiro, em 1957, que ampliou a fortuna crítica desse romance introspectivo da ficção nordestina dos anos 1950.

No jornal A Manhã, de 29/6/1954, Adonias Filho afirmou que os mais expressivos romances brasileiros “tomaram a ‘aldeia’ como o grande cenário”, como o romance Flagelo, de Armindo Pereira, representante de como o “plano social, sempre integrante da novelística nordestina, subsiste ainda na base daquela desesperação, naquele conflito que significa o sofrimento, o luto e a morte. Em Armindo Pereira, o espaço é o mesmo, sempre a região demarcada que possibilita a análise vertical, a criatura progressivamente se interiorizando”.

Na revista O Cruzeiro, Geraldo de Freitas registrou que o romancista “oscila entre a narrativa e o poético”, abordando o cangaço para além do realismo, com foco “nas ressonâncias psicológicas que aquele fenômeno nordestino provoca na sensibilidade das personagens” (O CRUZEIRO, 1/5/1954: p. 42).

A segunda edição, revista e ampliada, foi publicada pela editora O Cruzeiro (1957), com capa e desenhos de Darel, teve o prefácio de Brito Broca, crítico renomado pela “interpretação inteligente e escrupulosa” (LEITURA, n. 2 (nova fase), agosto de 1957: p. 61). A repercussão nos periódicos especializados em letras e artes pode ser medida nos comentários da revista Leitura, bem como entrevista com o romancista na Revista da Semana (n. 27, 6/7/1957: p. 27).

Para José Roberto Teixeira Leite, “Armindo procura retratar a alma do homem do Nordeste, dedicando ao cenário importância bem menos ampla”. Segundo o crítico, uma “peculiaridade de ‘Flagelo’: a ausência de intrigas amorosas, no romance, o grande personagem é a enchente que arrasa, em sua passagem, homens e campos” (REVISTA DA SEMANA, n. 37, 14/9/1957: p. 28-29).

No Jornal de Letras (n. 98, setembro de 1957: p. 10), propaganda desta edição transcrevia trecho da orelha do livro em que Adonias Filho comentava a reedição de Flagelo:

Abre-se o livro, simultaneamente, sobre dois alicerces: a paisagem nacional em aspectos da sua natureza bárbara e o reflexo imediato sobre as criaturas no abismo da condição humana. A simples configuração do tema já indica as possibilidades do romancista. Erguendo as linhas em uma perspectiva ampla, servindo-se por vezes dos quadros físicos, expõe com objetividade o painel medonho. O esforço é pela expressão direta, curta, mas integrada em uma sequência rítmica. Retomando a linguagem literária, usando-a de preferência à língua popular, distende o vocabulário e enriquece a narrativa. Em todos os momentos, em consequência, projeta-se um lirismo verbal que, articulando a palavra à estrutura da frase, impõe ao romance um indiscutível sentido artístico.

Na revista Leitura, José Amado Nascimento destacou que o romancista assume o papel de personagem e narrador, na medida em que “intervém na trama da história narrada e começa a dar palpites, a emitir opiniões”. O narrador escreve o romance, por meio de suas notas, retratando o enfrentamento da enchente do rio e o ataque do bando de Lampião. Sabe-se que era “ferreiro e carpinteiro”, mas não quando revelou suas anotações. Apesar de distinguir o drama pessoal do coletivo, o “coletivo domina o drama pessoal do personagem”. Com a loucura e morte de Laura, mulher do narrador, Armindo Pereira alcançou “um clima de quase tragédia”, ante as forças superiores ao “seu engenho e às energias humanas”. Contudo, no final do romance, ressurgia a esperança do retorno à terra, no seu ímpeto de reconstrução (LEITURA, n. 8, fevereiro de 1958: p. 36).

Já Stella Leonardo considerava o livro um épico, que, pelo “vigor, mestria verbal, força simpleza” tornar-se-á um clássico, possuindo algo de “bíblico, diluvial, que lembra a arraigada impressão de ‘castigo’, vindo de Jeová”. Em sua leitura, o livro “fica na memória, ‘gritando coragens por gestos e atos’. Livro maravilhosamente bem urdido na íntima e coletiva vivência” (LEITURA, n. 59, maio de 1962: p. 19).

Vê-se que o ficcionista sergipano foi reconhecido por setores da crítica literária especializada, especialmente por conta da abordagem psicológica e intimista de temas sociais no romance brasileiro, como os desastres naturais e o cangaço. O que lhe interessava não era a descrição da paisagem nordestina, como fora realizada pelo romance de 1930, mas a paisagem interior e a vida subjetiva no enfrentamento das agruras sociais. É a alma humana, sua inspiração ficcional para a construção de um romance de contextura alegórica.

Apesar do sucesso editorial de seus romances, nos anos 1950 e 1960, o ficcionista não foi ainda devidamente estudado por historiadores da literatura brasileira, muito menos como ensaísta, como em A Esfera Iluminada, com prefácio de Otto Maria Carpeaux e editada pela Organização Simões, em 1966.

Na construção das memórias do Rio São Francisco, Joycelaine Oliveira destacou-lhe, na trama narrativa, o impacto da devastação da enchente do rio São Francisco nas populações ribeirinhas no sertão de Sergipe, em Vila Nova. O título do romance remeteria à significação bíblica, cujo terror vivido pelos ribeirinhos “faz lembrar que Deus é um ser punitivo e cruel do Velho Testamento, quando desencadeava sobre os pecadores sua cólera sagrada”. Seguindo Brito Broca, em seu prefácio, a pesquisadora reafirma que o romance foi inspirado no livro A Peste (1947), de Alberto Camus (2014: p. 41 e 78).

Entretanto, essa presença existencialista de toque intimista, diferenciadora do romance regionalista dos anos 1930, não permitiu a Armindo Pereira fugir da visão flageladora dos sertões nordestinos, ora assolado pela enchente do rio São Francisco, ora atacada pelos bandos de cangaceiros de Lampião. O ceticismo da atmosfera de pesadelo na narrativa não dá margens à esperança de um mundo melhor. Ao final, o drama pessoal da saudade da mulher do narrador, Laura, abandonada durante a fuga da enchente do rio, irrompeu como contraponto às minúcias da catástrofe e da morte, que permeiam o romance, marcado pela tensão entre as forças naturais e a violência lampiônica do cangaço, restando-lhe apenas a memória dos “companheiros de tempo perdido, único tempo ganho da vida” (PEREIRA, 1957: p. 231).

Como um dos representantes das tendências introspectivas da literatura brasileira dos anos 1940 e 1950 (BOSI, 2017: p. 448), sua obra permanece desconhecida das novas gerações, contrariando a afirmação de José Amado Nascimento de que seu romance inaugural o tinha dado o direito de “entrar para a história literária dos sergipanos” (NASCIMENTO in LEITURA, n. 8, fevereiro de 1958: p. 37).

Antônio Fernando de Araújo Sá é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe

BIBLIOGRAFIA

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 51ª. Edição. São Paulo: Cultrix, 2017.

FILHO, Adonias. Volta ao Regionalismo. Suplemento Letras e Artes (Jornal A Manhã), 29 de junho de 1954.

FREITAS, Geraldo. No mundo dos livros. O CRUZEIRO, 1/5/1954: p. 42.

FREITAS, Geraldo. No mundo dos livros. O CRUZEIRO, 17/7/1954: p. 84.

GOES, Carlos Augusto de. A esfera iluminada. Leitura, n. 108. agosto de 1967: p. 12.

LEITE, José Roberto Teixeira. Os livros. Revista da Semana, n. 37, 14/9/1957: p. 28-29.

LEONARDOS, Stella. Um épico alegórico. Leitura, n. 59, maio de 1962: p. 19.

NASCIMENTO, José Amado. Quase uma tragédia. Leitura, n. 8, fevereiro de 1958: p. 36-37.

OLIVEIRA, Joycelaine. Homens anfíbios: os remeiros do São Francisco na literatura regionalista. Uberlândia: Programa de Pós-Graduação em Geografia/UFU, 2014 (tese de doutorado).

PEREIRA, Armindo. Flagelo (romance). 2ª. Edição, revista e ilustrada. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1957.

SANTOS, Gilfrancisco. Agremiações culturais de jovens intelectuais na imprensa estudantil: grêmio Clodomir Silva & mensagem de novos de Sergipe. Aracaju: EDISE, 2019.

PEREIRA, Armindo. Flagelo (romance). 2ª. Edição, revista e ilustrada. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1957. Agradecimento especial ao pesquisador Gilfrancisco dos Santos pelo material fornecido para a escrita desse trabalho.


Atualizado em: Qua, 27 de março de 2024, 11:06
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