Seg, 05 de julho de 2021, 22:37

A cor das palavras: notas sobre a contística de Taylane Cruz
Luiz Eduardo Oliveira

Antonio Carlos Viana (1944-2016) estava certo ao reconhecer a qualidade dos contos de Taylane Cruz já na época do lançamento do seu primeiro livro, Aula de Dança e outros contos (Infographics, 2015). Na ocasião, ele atentava para o fato de as histórias da escritora não seguirem rigorosamente a clássica receita de Edgar Allan Poe (1809-1849), segundo a qual o “efeito único” (single effect) ao final de um conto, pegando de surpresa o leitor, marcaria a característica básica do gênero. No caso Aula de Dança, conforme nosso premiado contista, as histórias terminavam, delicada e sutilmente, sem sobressaltos. Isso, no entanto, não significa que a sua leitura não seja surpreendente.

Com efeito, a autora, que tinha então 25 anos e já era formada em Comunicação Social - Jornalismo pela UFS, fez sua estreia literária com uma escrita maturada, como se já tivesse uma poética própria, na qual reconhecemos, todavia, dentre outros indícios intertextuais, um pouco da Nélida Piñon de Sala de Armas (1973). Taylane Cruz dá um sentido e uma cor quase pessoal, ou autoral, às palavras que usa, reinventa e retoma sempre que a ambiência da narrativa pede, misturando-as às falas e descrições de muitas de suas personagens infantis, como em “Marina”, em que, debaixo de um pé de acerola, duas meninas vivenciam um amor “floral, florido, florestal” que a narradora descreve como “o ápice do erotismo que uma menina de dez anos podia sentir”.

Mas suas histórias ultrapassam em muito o erotismo pré-adolescente, seja alcançando momentos dramáticos, como em “A menina manca” e “A rosa e o leiteiro”, seja experimentando perspectivas diferentes, mediante personagens que ganham voz e densidade psicológica na medida em que assumem contornos específicos. Assim, Aula de Dança adota focos narrativos diversos, em terceira pessoa, como narrador(a)-testemunha, ou em primeira pessoa, como narrador(a) protagonista, caso do conto que dá título à coletânea, sobre uma avó que decide frequentar uma aula de dança e acaba conhecendo um “belo homem” que a convida para dançar e a faz parecer “perdida, sem saber bem o que fazer”.

Algo que chama a atenção nos contos é o fato de a autora não situar, histórica ou geograficamente, suas histórias, apesar de ser reconhecível algum localismo sergipano em um ou outro vocábulo ou expressão, ou mesmo em algumas rememorações, práticas e tradições de infância em cidades do interior. Eu poderia resumir os 26 contos de Aula de dança destacando o modo delicado ou sutil com que a autora trabalha os temas, descreve situações e lida com as digressões, pensamentos e sentimentos das personagens, mas isso não seria suficiente para dar ideia de como o conjunto de contos funciona quando lidos de maneira contínua.

A pele das coisas (Multifoco, 2018), coletânea de 31 contos publicada três anos depois, confirma as qualidades do seu primeiro livro, como bem notou o “imortal” Antônio Torres, no pequeno texto que serve de introdução intitulado “Mais do que dois dedos de prosa”. O projeto gráfico do livro, assinado por Carolinne de Oliveira, é menos sofisticado do que o primeiro, já esgotado, feito por Mayumi Kimura, embora o texto esteja mais bem cuidado, com uma quantidade reduzidíssima de gralhas.

Tendo sido o primeiro livro da autora a que tive acesso, a minha impressão ao lê-lo era de que havia poesia em seus contos. Só depois pude perceber que se tratava de uma poética, isto é, de uma contística bem estruturada, com a recorrência ou reincidência de certas palavras que significam mais do que elas mesmas, adquirindo um novo contorno, uma nova coloração. Aqui também diferentes tipos de narrador são adotados, em primeira ou terceira pessoa, às vezes uma menina, às vezes um menino, às vezes uma mulher. São histórias bem sacadas, com detalhes e aspectos que passariam despercebidos por um(a) observador(a) menos atento(a).

Os pensamentos íntimos das personagens, seus pequenos grandes gestos, são tocantes e muitas vezes comoventes, como em “A menina do lábio leporino”. Percebo inclusive laivos de outras épocas, ou de uma certa historicidade, em alguns contos, como se se tratassem de histórias de um outro tempo, ao ponto de não sabermos exatamente quem fala, ou qual é o seu lugar de fala, caso de “Lábios vermelhos”. O material da memória e da infância, pelo resgate ou reinvenção de vocábulos e brincadeiras, também nos remete, em alguns casos, a outros momentos históricos, como em “Bolas de gude”.

Mais do que em Aula de dança, A pele das coisas, que também emociona no conto que lhe dá título, sobre uma menina cega cujos olhos eram “duas águas-vivas azuis” na loja onde trabalha a narradora, trata de temas difíceis, ou no mínimo delicados, que se colocam como um desafio para qualquer escritor, tais como a prostituição (“Suely dos Anjos Coração”), câncer (“Aquário artificial” e “Pérolas na garganta”), autismo (“Flauta doce”), Alzheimer (“Uma mulher sai para caminhar”), mas a maneira como são (re)tratados em seus contos não é forçada ou pretensamente ensaística, pois emergem das necessidades da própria história, das próprias personagens, de modo que se mostram em toda a sua crueza, tomando o(a) leitor(a) de assalto.

Os temas são mais inquietantes ainda em O sol dos dias (Penalux, 2020), coletânea de 19 contos que, como diz Maruze Reis no prefácio, dá uma dimensão surpreendente às personagens. Nesse livro, as histórias são mais extensas, mais trabalhadas, e carregam uma ambiência própria que fica em nossa memória depois da leitura. A autora faz novos experimentos no foco narrativo e na linguagem, que se apresenta mais contida, ou concisa. “Saravá”, por exemplo, conto de abertura de quase seis páginas, é escrito num só parágrafo em forma de carta, dirigida a uma certa Dona Ediléia e escrita por Dona Creuzinha a pedido de Saravá, uma espécie de moradora de rua benquista da vizinhança que, numa curiosa desforra, deseja “muita luz” e “força para o que há de vir” à senhora que a agrediu “esmurrando a cara” e que agora estava com câncer.

Em O sol dos dias, que tem uma bela capa assinada por Mayumi Kimura, já podemos perceber os vocábulos, as formas sintáticas, as imagens e os tipos de personagens característicos da autora, que agora descreve com mais propriedade as flores, presença constante em seus contos, como em "Riso", e consegue surpreender ainda mais o(a) leitor(a) com sua aparente brandura, diante de situações muito incômodas, como a do conto “Ilha dos passarinhos”, sobre um abuso sofrido por uma menina, a pequena Tica, que brincava de roda com suas amigas quando um turista já idoso, aproveitando-se da brincadeira, beija-lhe a boca furtivamente e depois se vai, acompanhado por ninguém menos do que o seu pai, Átila, que, nada tendo percebido, havia transportado o turista em seu barco, apresentando-lhe a sua ilha paradisíaca. De maneira igualmente insuspeitada, o tema da prostituição infantil aparece em “Boneca de pano”, e o da eutanásia em “O abajur de cristal”, sobre a filha da lavadeira que aplica doses de morfina em Dona Laura, uma idosa que sofre de uma doença terminal.

A ousadia temática da autora, contudo, não faz com que o livro seja, de alguma forma, panfletário ou engajado com alguma causa, pois as situações que são flagradas e concentradas em sua sintaxe narrativa emergem das circunstâncias do próprio enredo, que ganha vida na contextualização sociológica e psicológica das personagens. Em “A menina-salamandra”, por exemplo, a cena de um trabalho de parto caseiro testemunhado pela narradora pré-adolescente, que também assiste, sorrateira, a entrega da criança, filha da prima de sua mãe, “a uma mulher andrajosa”, é atravessada pelo fato de a mãe tê-la flagrado “hipnotizada pela xota de Elza”. Da mesma forma sutil e delicada são narradas os outros contos do livro, que parece iluminar-se a cada história, como o pintinho rompendo a casca do ovo do conto que lhe dá título.

Essa sutileza ou delicadeza no modo de encarar as coisas e, sobretudo, de dizê-las, dá ao seu trabalho uma qualidade que me deixou, ao mesmo tempo, surpreso e inconformado pelo fato de haver, na UFS, pouquíssima ou nenhuma discussão e crítica acerca da produção cultural, de modo geral, e literária em particular, dos autores e autoras “daqui”.

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Luiz Eduardo Oliveira é Professor Titular do Departamento de Letras Estrangeiras da UFS.