Sex, 05 de novembro de 2021, 12:33

Democracia e Direitos Humanos: Usos públicos da história
Antônio Fernando de Araújo Sá

... a história não pode anular ou excluir a política, ou melhor, as tradições não podem expulsar a política da história” (REIS, 2020: p. 5).

O uso público da história como um novo campo de estudos trouxe-nos a percepção de que “o conhecimento e as representações do passado são inseparáveis de suas circunstâncias políticas e sociais” (PASAMAR, 2004: p. 15). O fio condutor para o exame do uso da história é o caráter problemático das representações do passado, conforme advertências dos estudiosos da memória. No caso brasileiro, o caráter de pacto e conciliação na transição à democracia, estabelecido pela Lei da Anistia, demonstra, de modo cabal, que a memória é um ponto-chave “para constatar a complexidade dos usos da história” (PASAMAR, 2004: p. 19).

Talvez Peter Burke ajude-nos a pensar esse problema ao afirmar que talvez “valha a pena examinar a organização social do esquecer, as regras de exclusão, supressão ou repressão e a questão de quem quer que quem esqueça o quê e o porquê. Em suma, a amnésia social. Amnésia se relaciona a ‘anistia’, com o que se chamava de ‘atos de esquecimento’, a obliteração oficial de memórias em conflito no interesse da coesão social” (2000: p. 85-86).

A transição à democracia no Brasil e os confrontos de memória da ditadura na Nova República (1985-2016) interpelaram a historiografia brasileira, mostrando que o “passado, longe de perder o interesse, não há deixado de acrescentar um atrativo nas últimas décadas” (PASAMAR, 2004: p. 17), especialmente no que se refere à questão democrática e aos direitos humanos.

A centralidade dessas temáticas na discussão política no Brasil atual se explica pela manipulação da memória realizada pelo governo de Jair Bolsonaro, com relação à memória da ditadura empresarial-militar (1964-1985). Sua eleição representou “uma inflexão na curta trajetória da democracia construída a partir da Nova República” (BENETTI et. alli., 2020), cuja emergência só foi possível em virtude do suposto “mal-estar” na democracia, resultante de uma conjuntura iniciada com as jornadas de 2013 e que teve como corolário o golpe de 2016.

Essa inflexão representa uma derrota tanto do “projeto político do Partido dos Trabalhadores no governo” como da “própria concepção de democracia materializada na Constituição de 1988” (PINHA, 2017: p. 246). Mas, às vezes, esquece-se que o permanente autoritarismo na cultura política brasileira “... não se manifesta apenas sob a forma de ditaduras. O processo do golpe de 2016 demonstra isso, assim como a oligárquica Primeira República e a dita “vaga” democrática entre o Estado Novo e a ditadura de 1964, com suas tentativas de golpe e perseguição política às formas de organização autônoma da classe trabalhadora” (OLIVEIRA, 2016: p. 229).

É nessa perspectiva que 2016 se insere na dolorosa cronologia do Brasil contemporâneo: 1954, 1955, 1961, 1964, 1968-69. Não há dúvida de que há uma continuidade de “vínculos da ditadura militar com o processo que resultou no golpe de Estado de 2016” (OLIVEIRA, 2016: p. 196).

No governo Bolsonaro, há uma instrumentalização política do passado da ditadura, cujos referenciais éticos e morais indicam a tentativa de legitimação do período, por meio de uma série de narrativas negacionistas, amplamente difundidas, inclusive como política de Estado. Como bem apontou Caroline Bauer (2020), os usos do passado no discurso de Bolsonaro buscam legitimar o discurso de um governo forte, que rompe com os pactos de coalizão e com os interesses individuais na política.

Sua contra-narrativa, assentada no negacionismo sobre as violações do passado, objetiva a afirmação de um caráter positivo do passado autoritário. Aqui o discurso da extrema-direita ressignifica a ditadura como passado a ser recuperado e não superado, contrapondo-se às políticas públicas de memória, desenvolvidas ao longo da chamada Nova República (1985-2016). Sua estratégia de gestão dessas políticas não incide, contudo, no desmonte das estruturas das comissões de reparação, mas na ocupação destes espaços para a construção de uma contra-narrativa baseada na valorização do regime militar (BENETTI et. alli, 2020).

Em continuidade à crise da democracia liberal-representativa, experimentamos um retrocesso com relação aos direitos humanos, que “surgiram como um modelo explicativo para entender o que acabara de acontecer”, com o final da Guerra Fria e as transições à democracia na América Latina. Por isso, “o idealismo dos direitos humanos não é a causa, mas a consequência das rupturas de época do final do século XX”. Depois de 1989, “o presente avançou para o horizonte predominante de expectativas”, na medida em que sem “futuro e sem passado, (...) o presente regenera o passado e o futuro apenas para valorizar o imediato. O futuro já não é mais visto como uma promessa, mas como uma ameaça” (HOFFMANN, 2019: p. 526, 530 e 553).

Como um “passado que não passa”, a histórica violação aos direitos humanos no Brasil obriga-nos a reconstruir uma cultura política pública a fim de desenvolver uma democracia radical, pois o “silêncio sobre os mortos e torturados do passado, da ditadura, costuma a silenciar sobre os mortos e os torturados de hoje” (GAGNEBIN, 2010: p. 185).

Assim, não podemos perder de vista que “os direitos humanos remetem a algo muito mais amplo que as violações que ocorreram em tempos de ditaduras. Os direitos dos presos nas cadeias, o direito ao trabalho e toda a gama de direitos econômicos, sociais e culturais, assim como as reivindicações territoriais por parte dos povos originários, são parte da agenda de direitos humanos” (JELÍN, 2014: p. 234)

Por conseguinte, a atual desconstrução da Constituição de 1988 representa grave retrocesso político, pois a carta magna “foi capaz de incorporar novos elementos culturais, surgidos na sociedade, na institucionalidade emergente, abrindo espaço para a prática da democracia participativa” (AVRITZER e SANTOS, 2003: p. 65).

Daí ser urgente a tarefa educativa de reconstrução/recriação do vínculo societário como condição para um desenvolvimento com justiça e aprofundamento da democracia, baseada na cultura dos direitos humanos. Essa tarefa da educação histórica não é promover os valores de direitos humanos, paz e democracia, mas sim o ensino dessas verdades históricas provisórias, que têm sido estabelecidas depois de uma pesquisa metódica e crítica, conforme propôs Anton de Baets (2010).

Então, a centralidade da memória pode ser vista não como “um apelo a comemorações solenes, mas uma tarefa de análise que deveria produzir instrumentos de reflexão para esclarecer também o presente, para evitar a repetição incessante, sob novas formas, das políticas de exclusão” (GAGNEBIN, 2010: p. 184).

Portanto,

O preço do silêncio imposto a respeito do passado não é ‘só’ a dor dos sobreviventes: também se paga por nossa resignação e impotência. Urge passar da resignação não só a indignação, mas a uma resistência efetiva, sem ressentimento, mas com a tenacidade e a vivacidade da vida (GAGNEBIN, 2010: p. 186).

Ao entrelaçar história, memória e esquecimento, temos que ter consciência de que todas as formas de lidar com o passado “envolvem interesse, poder e exclusões”, e que, para a busca de uma política de justa memória no Brasil, precisamos estabelecer um difícil equilíbrio “entre a obsessão pelo passado e as tentativas de imposição do esquecimento” (ARAÚJO & SANTOS, 2007: p. 109). Nesse debate, talvez o historiador possa contribuir, denunciando as censuras oficiais de memórias incômodas ou o uso político do passado para justificar o presente, reiterando que uma de suas mais importantes funções “é ser um lembrete” (BURKE, 2000: p. 89).

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Antônio Fernando de Araújo Sá é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe

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BIBLIOGRAFIA

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BAUER, Caroline Silveira. Usos do passado da ditadura brasileira em manifestações públicas de Jair Bolsonaro. In: KLEM, Bruna, PEREIRA, Mateus e ARAÚJO, Valdei (organizadores). Do fake ao fato: Des(atualizando) Bolsonaro. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

BENETTI, P. Et al. Políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: entre a negação e o desmonte. Mural Internacional, Rio de Janeiro, Vol.11, e48060, 2020.

BURKE, Peter. História como Memória Social. In: Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

DE BAETS, Antoon. O impacto da Declaração Universal dos Direitos Humanos no estudo da História. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 05, p. 86-114, set. 2010.

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HOFFMANN, Stefan-Ludwig. Os Direitos Humanos e a História. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 11, n. 27, p. 525 - 560. maio./ago. 2019.

OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. O Golpe de 2016: Breve ensaio de história imediata sobre democracia e autoritarismo. Historiæ, Rio Grande, 7 (2): 191-231, 2016.

PASAMAR, Gonzalo. El “uso público de la história”, un dominio entre la urgencia y el desconcierto. In: FORCADELL, C. et. Alli. (orgs.).Usos públicos de la Historia y política de la memoria. Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza, 2004.

PINHA, Daniel. Projetos de Democracia em dissolução no Brasil desde 2016. In: GUIMARÃES, Géssica, BRUNO, Leonardo & PEREZ, Rodrigo (orgs.). Conversas sobre o Brasil: Ensaios de Crítica Histórica. Rio de Janeiro: Autografia, 2017.

REIS, Daniel Aarão. Notas para a compreensão do bolsonarismo. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p. 1-11, jan.-abr. 2020.URL: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/viewArticle/36709.

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